
Por Marcos Cintra
A recente e pertinente sinalização governamental acerca da desoneração da folha de pagamento, conforme ressaltado recentemente pelo gerente de Projeto da Reforma Tributária da Receita Federal, Marcos Flores, emerge como um movimento de inegável acerto estratégico para a revitalização da dinâmica econômica brasileira. Esta percepção, embora possa ser interpretada por alguns como tardia, representa, na realidade, um reconhecimento crucial da interdependência entre a simplificação do sistema tributário e a necessidade premente de recalibrar a onerosidade sobre o fator trabalho no país. A “destributação” do salário, é de fato, um complemento essencial para a efetiva criação e sustentabilidade do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), pilares da reforma.
A proposta de mitigar os encargos sobre o trabalho, através da substituição de parte da contribuição previdenciária incidente sobre a folha por uma alíquota sobre a receita bruta não é apenas um aceno à empregabilidade e produtividade nacionais. É também um imperativo para a compensar os impactos da elevação da carga tributária incidente sobre os prestadores de serviços, onerados pesadamente pela substituição do ISS e do Pis/Cofins cumulativo pela CBS e pelo IBS, instituídos pela EC 103/2023 da reforma tributária do consumo.
Marcos Flores, ao enfatizar a necessidade de medidas estruturais para reduzir a informalidade e impulsionar a produtividade, corrobora essa visão ao apontar a taxa de crescimento da produtividade brasileira (apenas 25% nas últimas quatro décadas) em contraste com a de países desenvolvidos, como os Estados Unidos (65% no mesmo período). Neste contexto, a desoneração da folha não se configura meramente como um alívio setorial, mas como uma complementação vital ao sucesso da reforma tributária mais ampla, habilitando a migração de regimes e o fomento a um ambiente de negócios mais positivo. A visão de Flores, ao alertar que “sem a desoneração da folha, a migração de regime [para o IVA] se torna inviável para muitos negócios”, particularmente para as empresas optantes do SIMPLES, sublinha a natureza mandatório desta medida como um catalisador da plena funcionalidade dos novos tributos sobre o consumo.
A redução do custo tributário do trabalho no Brasil transcende a mera otimização de despesas empresariais; ela se traduz em uma cascata de externalidades positivas. Incentiva-se, primariamente, a formalização de milhões de trabalhadores hoje imersos na informalidade — uma chaga social e econômica que abrange aproximadamente 40 milhões de brasileiros, com picos de 41% em setores como bares e restaurantes. Adicionalmente, estimula-se a criação de novos postos de trabalho e se fomenta a produtividade, elementos intrínsecos ao crescimento sustentável e inclusivo de qualquer nação.
Essa iniciativa, portanto, em tese, beneficia tanto o empregador, ao reduzir o custo da mão de obra, quanto o empregado, ao abrir vias para maior formalização, com a consequente garantia de segurança jurídica e direitos trabalhistas fundamentais. Os estudos citados pela Receita Federal, indicando um baixo impacto orçamentário e uma possível redução da informalidade em até 10% nos dois primeiros anos de aplicação da desoneração, reforçam a urgência e a viabilidade desta política.
Contudo, a despeito dos louváveis intentos da desoneração, é imperativo reconhecer que tal medida, mesmo que bem-vinda e praticada em momentos econômicos precedentes, está aquém de ser a panaceia seja para o necessário reequilíbrios dos impactos setoriais do novo modelo tributário do consumo, seja para atenuar o problema crônico do financiamento da previdência social brasileira.
A desoneração ampla da folha deve ser compreendida como um instrumento estratégico, uma alavanca para catalisar a instauração de uma fonte de financiamento previdenciário intrinsecamente nova e robusta. A mera transposição da base da folha de salários para a base do faturamento, como frequentemente sugerido e praticado, é um movimento reconhecidamente insuficiente. Embora possa promover uma redistribuição da carga tributária entre setores e corporações, ela falha em endereçar a questão fundamental de uma base arrecadatória que se mostra incapaz de acompanhar a complexidade da realidade econômica e social do século XXI.
O faturamento, como base, não abrange a vasta economia informal, que movimenta anualmente cifras bilionárias à margem da tributação previdenciária. Sem uma alteração paradigmática na metodologia arrecadatória, o país estará condenado a sucessivas reformas pontuais, muitas vezes politicamente custosas e de eficácia limitada, que apenas adiam um colapso sistêmico.
Nesse cenário de premência por soluções duradouras, o avanço em direção a uma nova contribuição previdenciária incidente sobre a movimentação financeira em substituição às suas atuais bases de financiamento afigura-se como o caminho mais promissor.
Esta proposição, já objeto de discussões aprofundadas e presente em sua essência em documentos legislativos como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Emprego, PEC 33/2023, de autoria da senadora Soraya Thronicke – que explicita um Imposto Federal Eletrônico (IFe) de ampla incidência – oferece um arcabouço para resgatar a solvência do sistema previdenciário nacional e mitigar o risco iminente de falência.
Conforme o texto da PEC do Emprego, o IFe incidiria sobre a “movimentação ou transmissão, ainda que por meio eletrônico, de valores e de créditos e direitos de natureza financeira”, com alíquotas aplicáveis tanto nos débitos quanto nos créditos bancários (PEC do Emprego, Art. 153, IX, § 7º, II, a). Sua justificação destaca que a unificação das bases tributáveis na movimentação eletrônica “permitirá ganhos consideráveis em simplicidade, automaticidade, baixo custo e minimização de evasão”, além de “automatizar a repartição das receitas fiscais em benefício de seus destinatários constitucionais” (PEC do Emprego, Justificação, “ARRECADAÇÃO DA UNIÃO – IMPOSTO FEDERAL ELETRÔNICO (IFe)”, Página 28/42).
Uma contribuição sobre a movimentação financeira possui um potencial arrecadatório vastíssimo, abrangendo transações em todas as esferas da economia – formal e informal, de grandes corporações a pequenos empreendedores. Sua apuração é intrinsecamente automatizada, resultando em custos de fiscalização e cobrança mínimos, e sua base é de difícil evasão, dada a premissa de que a maior parte da atividade econômica moderna, em alguma medida, transita por algum tipo de transação financeira. A própria PEC do Emprego aponta a radical mudança na cultura do brasileiro, com a adesão massiva a meios eletrônicos de pagamento, como o PIX, como um cenário propício para a instituição de tal tributo. Nesse sentido, a nova base de financiamento previdenciário comporta alíquotas baixas e estáveis, o que garante não apenas uma base sólida de financiamento como uma significativa redução no impacto altista do CBS/IBS na carga tributária do setor terciário brasileiro, responsável por mais de 65% dos empregos gerados no país.
A PEC do Emprego reforça essa lógica ao afirmar que “Com a desoneração da folha de pagamentos, ganha o trabalhador e ganha o empregador” (PEC do Emprego, Justificação, “ARRECADAÇÃO DA UNIÃO – IMPOSTO FEDERAL ELETRÔNICO (IFe)”, Página 28/42). Esta é a oportunidade de edificar um sistema previdenciário robusto, cuja sustentabilidade não dependa exclusivamente do emprego formal, configurando um modelo resiliente às incertezas do mercado de trabalho e às variações demográficas.
A intenção do governo em desonerar a folha de pagamento, conforme destacado pelo gerente de Projeto da Reforma Tributária da Receita Federal, Marcos Flores, ressurge como um ponto louvável e crucial para a dinâmica econômica brasileira, porém ainda tímido e tentativo.
O cerne da questão reside na inadequação da base sobre a qual recai a maior parte do sistema de financiamento, seja a folha de salários seja o faturamento das empresas. O modelo de repartição simples, que se apoia nas contribuições de salários de trabalhadores ativos para bancar os benefícios de aposentados, revela-se estruturalmente insuficiente diante das profundas transformações demográficas e do mercado de trabalho que o Brasil atravessa. A pirâmide etária brasileira inverteu-se drasticamente: temos um contingente cada vez menor de jovens e adultos em idade produtiva e contribuinte, enquanto a população idosa, que demanda benefícios, cresce exponencialmente. Este fenômeno demográfico, aliado à persistente informalidade do mercado de trabalho, que mantém milhões de trabalhadores fora da base formal de contribuição, exaure a capacidade arrecadatória do sistema. Reduzir benefícios, por mais impopular que seja, ou combater a corrupção e desvios – que, embora necessários, representam uma fração do rombo estrutural – acaba por não resolver em definitivo o problema, que invariavelmente ressurge com a perene falta de recursos.
A proposta do governo em desonerar a folha é, sem dúvida, um passo na direção certa, um alívio pontual para empresas e trabalhadores. No entanto, sem que esta medida esteja inserida em uma estratégia mais ampla e disruptiva de redefinição da base de financiamento da Previdência, o alívio será momentâneo e a crise, inevitavelmente, retornará com maior gravidade. As empresas precisam de mais do que um fôlego temporário; as finanças públicas clamam por uma solução estrutural. É tempo de ousar e repensar o financiamento da Previdência para além dos modelos que se esgotaram.
Marcos Cintra é doutor em economia pela Harvard University (EUA) e professor-titular e vice-presidente da FGV (Fundação Getulio Vargas). Foi secretário especial da Receita Federal.
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