
Por Adriana Stamato e Carolina Sposito
O título desse breve artigo pode soar preocupante, e realmente é . A reforma literalmente de fato já chegou no contencioso, uma vez que foram ajuizadas ações questionando alguns pontos. Porém, o mais preocupante é o que ainda está por vir.
Como sabemos, a Emenda Constitucional 132/2023 estabeleceu as bases para a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cuja regulamentação inicial está contemplada no já conhecido PLP 68/2024. No entanto, um aspecto que ainda não foi amplamente abordado é o impacto da reforma no contencioso tributário e a reforma do contencioso tributário propriamente dita, a fim de se amoldar aos novos tributos e aos conflitos que potencialmente surgirão.
Uma das primeiras preocupações é que eventual conflito poderá atingir os três entes federativos, já que, a despeito da extinção do ICMS, ISS, PIS e COFINS, a competência fiscal da União, Estados e Municípios foi preservada para efeitos do IBS e CBS.
Com efeito, a Constituição Federal, em seu artigo 156-B, § 2º, V, estabelece que “a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, deixando claro que, embora haja a possibilidade de trabalho conjunto, não será mandatório.
A mera possibilidade de haver interpretações divergentes e decisões não uniformes não é algo desejável, pois enfraquece a simplificação proposta pela reforma como um dos seus principais objetivos.
Diante disso, cabe acompanhar com muita atenção o Projeto de Lei Complementar 108/2024, que pretende regulamentar o IBS e o Comitê Gestor. Esse PL prevê que o Comitê será responsável por coordenar as atividades de fiscalização, lançamento e cobrança do imposto, além de decidir o contencioso administrativo e promover a inscrição em dívida ativa dos créditos tributários de IBS. O comitê também terá a função de coordenar, em âmbito administrativo e judicial, a adoção dos métodos de solução adequada de conflitos relacionados ao IBS entre os entes federativos e os sujeitos passivos[SAG1] [SCM2] .
No caso da CBS, por se tratar de uma contribuição federal, sua administração continuará a cargo da Receita Federal do Brasil, e o contencioso administrativo será processado no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Diferentemente do IBS, que contará com um Comitê Gestor com competências próprias para resolver conflitos administrativos, a CBS seguirá o modelo tradicional de contencioso federal, o que pode gerar assimetrias na forma de resolução de litígios entre os dois tributos que, embora semelhantes em estrutura, terão instâncias distintas de julgamento.
As discussões no Congresso sobre o PLP 108/2024 têm se concentrado na necessidade de uma integração mais efetiva entre os entes federativos para evitar conflitos e sobrecarga no Poder Judiciário. Relatório[1] recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) indicou que a reforma tributária tem potencial de elevar o contencioso judicial tributário a níveis inéditos, esgotando os recursos do Poder Judiciário. O relatório também destaca a ausência de integração entre a cobrança e a defesa dos créditos do IBS e da CBS como um sério risco de sobrecarga para a infraestrutura do Poder Judiciário.
Em paralelo, a Advocacia-Geral da União apresentou à Presidência do STJ uma minuta de proposta de emenda constitucional que contempla dois pontos principais: a criação de um tribunal federal, com composição a ser definida, provavelmente com participação de Juízes de Direito, para julgar os novos tributos; e a criação de ações diretas de legalidade e de constitucionalidade. Até o presente momento, esta proposta não foi formalmente apresentada como projeto de emenda constitucional, mas já encontra resistência, além de questões orçamentárias relevantes.
Todas essas discussões e perspectivas são extremamente importantes em vista das dúvidas relevantes sobre como se dará, na prática, o contencioso judicial envolvendo o IBS e a CBS. A manutenção da competência fiscal dos três entes federativos, aliada à criação de um Comitê Gestor com atribuições administrativas, levanta questionamentos sobre a jurisdição competente para julgar litígios envolvendo o IBS, especialmente porque haverá reflexos simultâneos para Estados, Municípios e a União e, portanto, à CBS.
A possibilidade de a União intervir em ações relativas ao IBS, sob o argumento de que os mesmos fatos geradores impactam a CBS, pode gerar sobrecarga na Justiça Federal e conflitos de competência. Soma-se a isso a recente atribuição ao STJ da competência para uniformizar a interpretação das normas do Comitê Gestor, o que pode ampliar ainda mais a pressão sobre a Corte (art. 105, I, ‘j’, da Constituição Federal).
Diante disso, inevitável surgirem questionamentos: como se dará a vinculação das decisões judiciais envolvendo o IBS e a CBS? Haverá efeito vinculante entre as esferas? Como evitar decisões conflitantes entre Justiças Estaduais e Federal?
Todas essas são perguntas ainda sem resposta clara, que evidenciam a necessidade urgente de uma estrutura jurisdicional adequada e integrada para lidar com os novos contornos do contencioso que inevitavelmente deve surgir diante de tantas mudanças no sistema tributário.
[1] O relatório foi publicado em 24/04/2025 no site do STJ. Leia o relatório “Impactos da Reforma Tributária no Poder Judiciário“.
Adriana Stamato Sócia/Partner em Trench Rossi Watanabe.
Carolina Sposito é associada do grupo Tributário em Trench Rossi Watanabe.
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