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Por Einar Tribuci
Com a publicação da Lei Complementar nº 214 de 2025 (“LC 214/25”), surgem dúvidas sobre os efeitos da reforma tributária no setor elétrico. A complexidade do setor se acentua quando somadas as implicações tributárias sobre esse bem essencial para a sociedade e que gera expressiva arrecadação federal e estadual.
E com a evolução da tecnologia, que possibilitou a inserção de recursos energéticos distribuídos, exigiu-se a modernização da legislação do setor elétrico, culminando em formatações de negócios que possibilitam ao consumidor de energia mais economia, o que torna ainda mais evidente a importância das questões tributárias aplicáveis.
Apenas para contextualizar, antes de adentrarmos as questões que se pretende endereçar com o presente artigo, o crescimento da geração distribuída sempre foi influenciado pelas questões tributárias. A publicação do Convênio Confaz n⁰ 16 de 2015, Lei Federal n⁰ 13.169 de 2015, em conjunto com as alterações introduzidas pela Resolução Normativa ANEEL n⁰ 687 de 2015, foram grandes responsáveis pela capacidade instalada de geração distribuída atual de 40 GW no Brasil. Na sequência, estados como Minas Gerais, concederam isenção de ICMS para a compensação de energia gerada por ativos de potência superior a 1 MW e geração compartilhada, levando o estado ao protagonismo de número de unidades geradoras dessa modalidade. Os dados não mentem e é claro como o sol que isenções tributárias tem o condão de incentivar determinados setores da economia.
Nesse sentido, as alterações promovidas pela reforma tributária, requerem, assim como para os demais setores, análise detida sobre seus impactos, que devem influenciar mudanças de comportamento dos consumidores e das empresas que participam desse mercado de forma holística.
Para marcação de nosso raciocínio interpretativo sobre a incidência da CBS e do IBS sobre a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à energia injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora, relembramos alguns conceitos.
- Classificação da energia elétrica como bem móvel
O Código Civil, art. 83, inciso I, classifica energia elétrica como um bem móvel. Na tabela de incidência do imposto sobre produtos industrializados (TIPI), posição 2716.00.00, a energia elétrica é classificada como um produto industrializado, apesar de a alíquota ser zero.
- Conceitos da geração distribuída na Lei Federal n⁰ 14.300 de 2022
Nos termos da Lei Federal nº 14.300 de 2022, art. 1º, inciso XIV, o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (“SCEE”):
Sistema no qual a energia ativa é injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída na rede da distribuidora local, cedida a título de empréstimo gratuito e posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa ou contabilizada como crédito de energia de unidades consumidoras participantes do sistema. (grifos nossos)
O mesmo diploma legal também dispõe no artigo 28 que “A microgeração e a minigeração distribuídas caracterizam-se como produção de energia elétrica para consumo próprio.”
Ou seja, a norma prevê a gratuidade na relação jurídica havida com a distribuidora sobre o montante de energia injetado e compensado, além de disciplinar que não há a transferência jurídica do bem, pois para consumo próprio.
Esses conceitos se harmonizam com a mais respeitada doutrina e jurisprudência da Corte Suprema de nosso país, em relação ao fato gerador do ICMS.
O professor Roque Antonio Carrazza dissecou essa questão com cautela cirúrgica:
O consumo de energia elétrica pressupõe, logicamente, sua produção (pelas usinas e hidrelétricas) e sua distribuição (por empresas concessionárias ou permissionárias). De fato, só se pode consumir uma energia elétrica anteriormente produzida e distribuída.
A distribuidora de energia elétrica, no entanto, não se equipara a um comerciante atacadista, que revende, ao varejista ou ao consumidor final, mercadorias de seu estoque.
É que a energia elétrica não configura bem suscetível de ser “estocado”, para ulterior revenda aos interessados.
Em boa verdade científica, só há falar em operação jurídica relativa ao fornecimento de energia elétrica, passível de tributação por meio de ICMS, no preciso instante em que o interessado, consumindo-a, vem a transformá-la em outra espécie de bem da vida (luz, calor, frio, força, movimento ou qualquer outro tipo de utilidade).
Portanto, apenas por “ficção” é que se pode entrever, na “circulação” de energia elétrica, duas operações distintas: uma, da fonte geradora à rede distribuidora; outra, desta ao consumidor final.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal assim se posicionou ao analisar a constitucionalidade de lei estadual, por meio da ADI 4.565 MC:
O perfil constitucional do ICMS exige a ocorrência de operação de circulação de mercadorias (ou serviços) para que ocorra a incidência e, portanto, o tributo não pode ser cobrado sobre operações apenas porque elas têm por objeto “bens”, ou nas quais fique descaracterizada atividade mercantil-comercial. (grifos nossos)
- Conceito de empréstimo gratuito
Passamos a analisar uma das espécies de contratos mencionados no artigo retro citado sobre o SCEE, o mútuo, que decorre de contrato originado quando da transferência de energia de uma unidade consumidora para a distribuidora local. O código civil traz em seus artigos, 586 e 587 a definição específica deste tipo de contrato:
Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Art. 587. Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição.
É cristalina a definição trazida pelo Código Civil, dispondo que deve ser restituído ao mutuante coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade, mas não necessariamente a mesma coisa. Assim, tendo em vista que a expressão “empréstimo gratuito” tem como intenção demonstrar que determinado montante de energia injetado pertence ao consumidor-gerador, nunca é transferida a propriedade do bem à distribuidora de energia.
Pois bem. Colocados esses conceitos, podemos adentrar a uma análise técnica da reforma tributária na geração distribuída.
Conforme previsto no artigo 4º da LC 214/25, a CBS e o IBS incidem sobre operações onerosas com bens ou serviços. Para fins do disposto do artigo, considera-se operação onerosa com bens ou com serviços qualquer fornecimento com contraprestação.
Que energia é um bem e que a operação de geração distribuída é catalogada como gratuita não temos dúvida, agora, sobre essa operação de injetar a energia e, que, posteriormente, esse montante, seja compensado sobre a conta de consumo do autoprodutor incida a CBS e o IBS, mantém-se a mesma indefinição existente anteriormente sobre os efeitos para o ICMS, o PIS e a COFINS.
Isso porque, a coexistência do artigo 4º com o artigo 28, § 3º, ambos da LC 214/25, se conflitam. Enquanto o primeiro artigo traz que os tributos incidirão apenas sobre operações onerosas (e que a Lei Federal nº 14.300/22 dispõe sobre a gratuidade da operação), o segundo prevê uma exclusão da base de cálculo da CBS e do IBS, presumindo, portanto, que há incidência tributária sobre essa operação.
Art. 28. Nas operações com energia elétrica ou com direitos a ela relacionados, o recolhimento do IBS e da CBS relativo à geração, comercialização e distribuição e transmissão será realizado exclusivamente:
§ 3º Exclui-se da base de cálculo da CBS e do IBS a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à energia injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora, acrescidos dos créditos de energia elétrica originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular.
§ 4º A exclusão de que trata o § 3º deste artigo:
I – aplica-se somente a consumidores participantes do Sistema de Compensação de Energia Elétrica, de que trata a Lei nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022;
II – aplica-se somente à compensação de energia elétrica produzida por microgeração e minigeração, cuja potência instalada seja, respectivamente, menor ou igual a 75 kW e superior a 75 kW e menor ou igual a 1 MW; e
III – não se aplica ao custo de disponibilidade, à energia reativa, à demanda de potência, aos encargos de conexão ou uso do sistema de distribuição, aos componentes tarifárias não associadas ao custo da energia e a quaisquer outros valores cobrados pela distribuidora.
Para concluir, a inclusão dessa disposição legal é ultrapassada por diversos motivos, seja porque a potência dos ativos de minigeração distribuída com o Marco Legal da GD estabeleceu limite de potência de 5 MW para fontes despacháveis, e 3 MW não despacháveis, além das Cortes Superiores terem julgado a incidência tributária sobre as demais componentes cobradas junto à energia, tais como demanda contratada não consumida, tarifa de uso do sistema de transmissão e distribuição, entre outras.
Espera-se que as regulamentações futuras corrijam essa questão e alinhem-se aos conceitos sedimentados pelo direito pátrio, evitando a insegurança jurídica que tanto assola o setor de geração distribuída, que ainda sim, resiliente e com capital privado, tem sido responsável pela segurança energética do país.
Einar Tribuci, sócio fundador do Tribuci e Fonseca Advogados, Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP, Diretor Jurídico e Tributário da Associação Brasileira de Geração Distribuída.
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