
Por Regina Krauss
O advogado tributarista Eurico Santi é um dos autores da proposta da reforma tributária, ao lado do atual secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, e de outros especialistas do Centro de Cidadania Fiscal, o CCiF. Segundo ele, a unificação de cinco impostos por meio do IVA dual e outras inovações da PEC 132/2023 tem para o Brasil uma importância comparável à do Plano Real na política monetária.
“Temos o que o Nelson Rodrigues chama de complexo de vira-lata, sabe? Parece que a gente não tem capacidade, que os outros são melhores”, exemplifica. Santi conta que a reforma foi elaborada através de um processo democrático sofisticado, com debates teóricos de alto nível, conduzidos por pessoas altamente sofisticadas e colaboração internacional de vários professores que são experts nesta área.
“Além de ser uma reforma da tributação, é uma reforma política muito intensa. Ela retira de 5.670 municípios o poder de conceder incentivos fiscais, criar complexidade no sistema e gerir cerca de 6.700 legislações municipais, substituindo tudo por um modelo unificado que põe fim à guerra fiscal”, defende. Santi explica que o IVA dual é utilizado na Índia e no Canadá, por exemplo, mas com legislações distintas. A inovação brasileira está na unificação da legislação para a CBS e o IBS.
Outro ponto de destaque para ele é que a tributação no destino trará ainda distribuição de renda federativa, com ganhos para cerca de 95% dos municípios. “Hoje a arrecadação das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte representa aproximadamente 50% de toda a arrecadação do ISS. A partir de agora vai ser possuir redistribuir para os pequenos e médios municípios”.
Eurico Santi defende que a reforma é uma vitória das instituições brasileiras, do diálogo da academia com os agentes fiscais de renda das três esferas, estadual, federal e municipal, que juntos, no decorrer de dez anos, analisam as melhores práticas internacionais para propor uma reforma tributária voltada para melhorar o ambiente de negócios.
No atual cenário geopolítico internacional, Santi analisa que o Brasil pode desempenhar papel relevante para atrair investimentos internacionais com Donald Trump adotando políticas protecionistas ao mercado interno nos Estados Unidos. “As pessoas tinham medo de investir no Brasil em razão da insegurança jurídica e da complexidade do sistema tributário. Agora, além de ter a melhor tecnologia fiscal do mundo, o sistema bancário mais sofisticado do mundo, a gente vai ter o melhor sistema tributário”, aponta.
“A reforma estabelece que o sistema tributário não deve mais interferir na competitividade entre as empresas”, destaca o advogado. Ele observa que, no modelo atual, “muitos setores e empresas fazem lobby para garantir benefícios fiscais exclusivos, distorcendo o mercado”. Na Emenda Constitucional 132, Art. 9, ficam proibidos os benefícios fiscais que não estejam previstos na legislação e só são permitidos regimes diferenciados desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.
O novo sistema tributário foi desenhado para criar um ambiente de negócios mais favorável, atrair investimentos internacionais e aumentar a competitividade das empresas brasileiras. Os responsáveis estudaram reformas realizadas em países como Nova Zelândia, Austrália e Portugal.
Eurico Santi cita que uma das dificuldades ao implementar mudanças em sistemas tributários de países democráticos é que é preciso conciliar os interesses de diversos players e das três esferas federativas. A última grande reforma no Brasil ocorreu em 1967, sob o regime militar.
Alíquota uniforme
Um dos pilares da reforma é a adoção de alíquotas uniformes. Inicialmente, propôs-se uma única alíquota, mas o modelo aprovado prevê três, aplicáveis à maioria dos setores. Setores como saúde, educação e agropecuária, contudo, continuarão com regimes específicos.
Equilíbrio
Hoje, o sistema atual de ICMS, ISS, PIS/Cofins arrecada cerca de R$ 1,2 trilhão por ano. Este número serve de base para a transição, que foi criada para garantir que não haja aumento de carga tributária. Em 2026, daqui a um ano, vai entrar uma alíquota de 1%, que é chamada alíquota teste. Eurico Santi detalha que, se em 2026 uma alíquota de 1% do IBS e da CBS arrecadar R$ 100 bilhões, será preciso uma alíquota geral, não de 30% ou de 27%, mas de 12% para manter estável a arrecadação. Se a alíquota de 1% arrecadar apenas R$ 50 bilhões, será necessária uma alíquota geral de 24%.
“As pessoas se apegaram ao debate da alíquota, como se ela fosse efetivamente uma grandeza que representasse a carga tributária. O que representa a carga tributária é o percentual dela em relação ao PIB. Isso vai se manter estável nesse novo modelo”, defende.
No desenho do Projeto de Emenda Constitucional, a transição foi pensada para garantir, primeiro, o respeito aos contratos que foram firmados anteriormente. Muitas empresas deslocaram centros de distribuição, indústrias e basearam contratos em isenções fiscais ofertadas por estados do centro-oeste, da Zona Franca de Manaus, por exemplo. “A transição de 10 anos implica respeito a estes acordos para não criar um problema de emprego, de ruptura dessas expectativas normativas”, conta Eurico.
Imposto sobre Imposto
Outro ponto crucial é a implementação da não-cumulatividade, que garante que os tributos incidam apenas sobre o consumo, sem onerar a cadeia produtiva. “Estamos incluindo o setor financeiro nesse modelo, algo raro no mundo. Isso reduzirá o custo do crédito no Brasil”, explica.
Segundo Santi, a não-cumulatividade faz com que a cada obrigação criada e paga seja gerado um crédito correspondente. Se tudo for declarado e pago, as operações se anulam. O crédito vinculado ao pagamento garante que esse recurso fica na conta do adquirente, para que ele possa pedir quando quiser.
A concepção de planejamento tributário muda, defende Santi. “Sai de cena a concepção de como desviar da tributação ou ter vantagens fiscais para tornar minha empresa competitiva e entra o que eu chamo de ‘clube do IVA’, no qual uma empresa inscrita regularmente tem resíduo tributário zero e deve tomar decisões de negócios em função da maior eficiência econômica”.
Esse novo modelo elimina gargalos históricos, especialmente para exportadores. “Para empresas exportadoras, a devolução de crédito será quase imediata. Embora a legislação estipule até 60 dias, sabemos que é possível fazer isso em um dia ou até em tempo real”, afirma.
Controle social
Uma das maiores mudanças trazidas pela reforma é a visibilidade sobre a carga tributária. “Agora, contamos com 220 milhões de fiscais da carga tributária”, afirma Santi. Segundo ele, como a alíquota será uniforme, qualquer aumento será imediatamente percebido pelos consumidores, gerando um controle social mais efetivo. “Se um prefeito aumentar a alíquota de 2% para 3%, todos os preços no município sobem, e a população vai perceber na hora. Isso dificulta qualquer tentativa de aumentar impostos sem justificativa.”
Essa transparência empodera os cidadãos, acredita. “Quando eu vejo quanto pago sobre o consumo, e no Brasil metade da carga tributária vem do consumo e metade do imposto sobre renda e patrimônio, começo a exigir qualidade de serviço público, educação, saúde e infraestrutura.”
Estados e municípios
A reforma interfere especialmente na maneira como os recursos serão distribuídos. “Nós conseguimos unanimidade entre os 27 estados, em 2019, para apoiar a reforma tributária. Eles entenderam que esse modelo é bom para todos”, destacou o especialista. Segundo ele, a complexidade atual do sistema, com legislações estaduais conflitantes, será eliminada. “Estamos substituindo 27 legislações de ICMS e suas milhares de regras regionais por uma única lei nacional.”
Além disso, a arrecadação será feita de maneira centralizada, com os valores sendo distribuídos conforme o consumo final. “No modelo atual, os estados muitas vezes competem entre si, oferecendo benefícios fiscais que prejudicam o equilíbrio federativo. Com a reforma, isso acaba, porque a tributação não depende mais de onde a produção ocorre, mas de onde o produto ou serviço é consumido.”
É aí que entra em cena o Comitê Gestor, uma entidade formada por representantes de estados e municípios. “Esse comitê vai gerenciar os recursos. Por exemplo, quando uma mercadoria circula entre São Paulo, Mato Grosso e Amazonas, o tributo fica retido até que a venda seja feita ao consumidor final. Nesse momento, o recurso é distribuído ao estado e município onde a venda ocorreu”, explicou.
O especialista ressaltou que a mudança traz segurança jurídica para os entes federativos. “Antes, o dinheiro entrava nos cofres dos estados e, muitas vezes, era usado para outras prioridades, como greves ou emergências, em vez de devolver créditos tributários às empresas. Agora, isso não será mais possível, porque o Comitê Gestor retém os valores até o momento correto de distribuição.”
Essa centralização também beneficia os municípios, que desempenharam um papel crucial no apoio à reforma. “Mais de 5 mil municípios, representados pela Confederação Nacional de Municípios, endossaram a proposta. Sem esse apoio, a reforma não teria avançado.”
Fim da guerra fiscal e logística mais eficiente
No novo sistema, a tributação não está atrelada ao local de produção ou distribuição. “Agora, é irrelevante juridicamente onde você coloca sua planta ou centro de distribuição. Você escolhe com base em conveniências logísticas e empresariais, sem que isso afete a carga tributária.”
Eurico Santi defende que a neutralidade tributária foi amplamente discutida com grandes empresas ao longo de uma década: “Toda segunda-feira, nos últimos 10 anos, me reuni com diretores das 14 maiores empresas do país para debater a reforma. A única coisa que elas pedem é segurança jurídica para investir.”
Mudanças no Simples Nacional
O Simples Nacional, responsável por 90% das empresas do setor de serviços, também passará por ajustes. “Hoje, o Simples não dá direito a crédito. Com a reforma, isso muda. Agora, impostos como ISS e ICMS que estão na alíquota do Simples geram crédito.”
Além disso, empresas terão a opção de aderir ao regime geral do IBS, mantendo os benefícios federais do Simples, como a desoneração da folha de pagamento. “Criamos um regime opcional. O empresário pode continuar no Simples convencional ou migrar para um modelo ainda mais simples, com apuração automática feita pelo Comitê Gestor.”
Uma reforma de Estado
Santi defende que a reforma é de Estado e não de governo. “Foram 10 anos de discussões, passando por quatro governos, e conseguimos o apoio de todos os estados, mais de 5 mil municípios e das principais empresas do país.”
O resultado deve ser visto como um ‘case de orgulho nacional’, uma vez que o Brasil sai do pior sistema tributário do mundo, para um dos mais modernos e eficientes, tanto para o fisco quanto para contribuintes investidores, afirma.
Eurico de Santi é doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Durante quase 17 anos, entre 1995 e 2009, atuou como professor da PUC/SP, coordenador da Pós-Graduação e coordenador Nacional dos Cursos de Pós Graduação e dos Congressos do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET.
Em 1996, foi vencedor do Prêmio de “Melhor Livro do Ano” concedido pela Academia Brasileira de Direito Tributário, com a obra “Lançamento Tributário”. Em 2000, recebeu a distinção especial da primeira nota dez da história da PUC/SP na defesa da Tese “Decadência e Prescrição no Direito Tributário”. Em 2001 passou a integrar o núcleo de formação da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Em 2008, foi vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria de “Melhor Livro de Direito”, com a obra “Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas: do fato à norma da realidade ao conceito jurídico”. Em 2009, fundou o Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP.
Em 2015, foi indicado entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti, com a obra “Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade: exercício do controle social rumo à cidadania fiscal”. Em 2015, fundou o Centro de Cidadania Fiscal, think tank independente, com o objetivo contribuir para a simplificação do sistema tributário brasileiro e para o aprimoramento do modelo de gestão fiscal do país. Atualmente é professor da FGV Direito SP.