
Por André Menon, Fernanda Sá Freire Figlioulo, Raquel Novais, Mércia Braga e Victória Tortorelli
A implementação da reforma tributária exige, além da mudança constitucional, a construção cuidadosa de um arcabouço infraconstitucional que garantam coerência, equilíbrio e efetividade ao novo sistema. Nesse cenário, o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que regulamenta o processo administrativo tributário do IBS e da CBS e o Comitê Gestor do IBS, assume papel central. Ainda que persista uma relevante discussão em curso sobre a competência para julgamento dos litígios relacionados a esses tributos, o presente artigo tem como objetivo contribuir com sugestões concretas de aprimoramento ao PLP 108/2024, focando exclusivamente nas regras do processo administrativo que já se pretende disciplinar.
A redação atual levanta preocupações relevantes quanto à efetividade dos mecanismos de resolução de conflitos entre entes federativos, ao equilíbrio entre Fisco e contribuinte e à segurança jurídica nas relações tributárias. É sobre essas fragilidades que este artigo se debruça, propondo aprimoramentos essenciais à consolidação da reforma.
- Resolução de conflitos no âmbito do Comitê-Gestor do IBS
Se, de um lado, se observa que não há dispositivo que impeça a fiscalização cumulativa de um mesmo fato gerador por diversas Unidades Federativas, de outro, não há disposição expressa que indique como serão solucionados internamente, no âmbito do Comitê Gestor do IBS, os conflitos de competência entre os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, o que causa uma enorme insegurança jurídica para os contribuintes.
Embora a Emenda Constitucional nº 132/2023 estabeleça a competência do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) para dirimir conflitos de competência entre entes federativos e o Comitê Gestor do IBS, o contribuinte não tem legitimidade para acessar diretamente o STJ, sendo essa prerrogativa exclusiva dos entes federativos e do CG-IBS. Assim, na hipótese de dúvida ou de conflitos entre entes, até mesmo em razão dos efeitos para fins de atribuição do destino, o contribuinte se vê obrigado a eleger um critério e efetuar o recolhimento do IBS.
Nesse sentido, eventuais conflitos de competência terão origem no âmbito do contencioso administrativo, quando o contribuinte for autuado. Caso o contribuinte busque ser proativo, poderá fazê-lo apenas no âmbito do Poder Judiciário, cujo trânsito é moroso e extenso, o que não se coaduna com a simplificação que se buscou por meio da centralização do recolhimento do IBS.
Por essa razão, é imperioso que haja, no bojo do Comitê Gestor, um mecanismo para a resolução dos conflitos de competência ativa, que poderá ser utilizado tanto pelo contribuinte quanto pelo ente federativo, de forma prévia ou paralela ao contencioso administrativo, em alternativa ao Poder Judiciário.
Considerando as situações em que o contribuinte realizou o pagamento do IBS e venha a ser autuado por alegada falha na eleição do(s) ente(s) destinatário(s), aplicar-se-á esse mecanismo do próprio Comitê Gestor, que permitirá a arbitragem do destinatário.
Com isso, evita-se um contencioso desnecessário, uma vez que, tendo sido incorretamente eleito o destinatário do tributo, o próprio Comitê Gestor poderá realocar ao(s) destinatário(s), com base no resultado da arbitragem e/ou uniformização, o valor que tenha sido pago pelo contribuinte. Havendo diferença a pagar, a parcela de contencioso poderá se limitar a essa quantia.
Para tanto, é necessária a definição em Lei Complementar de um processo extrajudicial de resolução de conflitos entre os entes federativos e os contribuintes, no caso de dúvidas e/ou conflitos referentes à sujeição passiva. O PLP 108/24 traz dois dispositivos que corroboram essa ideia:
Art. 2º
[…]
IX – coordenar, em âmbito administrativo e judicial, a adoção dos métodos de solução adequada de conflitos relacionados ao IBS entre os entes federativos e os sujeitos passivos e estabelecer a padronização dos critérios para a sua realização, observado o disposto em lei específica;
Art. 3º
[…]
§ 5º Eventual divergência acerca da interpretação, da apuração da base de cálculo ou do enquadramento dos fatos geradores, por ocasião da fiscalização, será tratada em procedimento a ser disciplinado pelo CG-IBS.
Diante do exposto, sugere-se a inclusão de um novo dispositivo no PLP nº 108/24 ou o aprimoramento dos dispositivos acima mencionados, a fim de garantir uma regulamentação de processo arbitral para essa finalidade.
A adoção de um processo arbitral no âmbito do Comitê Gestor do IBS representa não apenas uma solução técnica viável, mas uma resposta moderna às demandas por celeridade, especialização e desjudicialização dos conflitos tributários. A arbitragem, amplamente utilizada em disputas complexas no setor privado, já vem sendo incorporada de forma crescente em matérias envolvendo a Administração Pública, inclusive com respaldo legal e jurisprudencial. Sua aplicação no contencioso do IBS permitiria a resolução qualificada de divergências entre entes federativos de forma menos litigiosa, mais ágil e adaptada às especificidades do novo modelo de tributação.
- Enfraquecimento da posição do contribuinte em violação ao princípio da paridade de armas
A atual redação do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, por diversas instâncias opta por enfraquecer a posição do contribuinte, não só em face dos órgãos da administração do IBS, mas também em comparação a sua contraparte nos processos administrativos, quais sejam a Autoridade Autuante e a Procuradoria Estadual ou Municipal.
Enquanto há no bojo do Projeto previsão expressa pela apresentação de contrarrazões pelas Procuradorias de Contrarrazões às manifestações dos contribuintes (artigo 110, §1º, inciso II), essa mesma prerrogativa não é concedida aos contribuintes com relação à Recursos de Ofício e/ou demais manifestações da Autoridade Autuante e das Procuradorias.
De modo similar, é expressamente estabelecido o uso irrestrito da palavra pela Representação da Fazenda Pública nas sessões de julgamento e até mesmo a participação da Autoridade Autuante como sua assistente quando da realização de sustentações orais (artigo 110, inciso III e §2º). A recíproca não é verdadeira com relação aos contribuintes.
Ainda, não há qualquer previsão quanto a apresentação de Memoriais de Julgamento e despacho junto aos membros dos órgãos julgadores – direitos dos contribuintes hoje já estabelecidos no âmbito do contencioso federal que será seguido para fins de disputas relativas à CBS, ampliando as disparidades nos ritos seguidos por tributos-irmãos.
Outra divergência significativa com relação ao rito da CBS, é a faculdade de “reformulação” do valor do crédito tributário após o lançamento, inclusive para sua majoração, sem previsão de nova manifestação do contribuinte (artigo 84, 3º). Afora, as críticas materiais que podem ser tecidas em relação a essa previsão, há que se destacar a divergência em face do rito processual estabelecido no Decreto nº 70.235/1972, que para essa situação – em homenagem aos princípios do contraditório e ampla defesa – indica expressamente a necessidade de reintimação do contribuinte para apresentação de defesa complementar (artigo 18, §3º).
Também nesse sentido, há que se destacar que o Projeto estabelece um prazo de 05 (cinco) dias para regularização de representação processual no âmbito do contencioso administrativo (artigo 86, §2º) – três vezes inferior ao estabelecido no Código de Processo Civil para a mesma situação (artigo 104, §1º). Esse é um ponto bastante relevante que pode acabar por cercear o acesso de diversos contribuintes ao contencioso administrativo.
Nesse mesmo contexto, a ausência de previsão específica disciplinando com mais precisão o compartilhamento de informações fiscais entre autoridades competentes para a fiscalização e constituição de créditos tributários relativos à IBS e CBS leva a uma fragilização da posição do contribuinte em face da Administração Pública.
Na redação corrente do Projeto há dúvidas, por exemplo, se a abertura de processo de investigação de IBS enseja também a interrupção de espontaneidade com relação à CBS ou se há interrupção do prazo decadencial, no caso de compartilhamento de informações.
Outro ponto que gera nítido enfraquecimento da posição dos contribuintes é a ausência de representantes de contribuintes no Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias – órgão que exercerá, dentre outras, a função de definir a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS. Ainda, segundo o artigo 111 do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, no exercício da função de harmonização deverá ser ouvido obrigatoriamente o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias – outro órgão composto integralmente por representantes da Administração Pública. Nenhuma previsão semelhante existe com relação à oitiva de representantes de contribuintes.
Igualmente, não há nesse momento no bojo do Projeto de Lei Complementar qualquer indicação do procedimento de apresentação de Consultas Tributárias pelos contribuintes seja ao Comitê-Gestor do IBS ou ao Comitê de Harmonização das Administração Tributárias.
Não é possível deixar de apontar nesse contexto a Presidência exclusiva de representantes da Administração Pública nas Câmaras e Turmas Julgadoras do contencioso administrativo do IBS, estabelecida nos artigos 107, §5º, e 109, §3º. Isto é dizer que, num contexto de empate de votos, nunca será dada a chance aos representantes dos contribuintes de contribuírem com o voto de desempate.
Todos os pontos acima apresentados contribuem para um contexto de extrema fragilidade dos contribuintes em face da Administração Pública, representada pelas Autoridades Autuantes e pelos integrantes da Procuradoria Estadual e Municipal.
Diante do referido contexto, a sugestão que se apresenta é a implementação de ajustes no texto para garantir paridade na relação fisco contribuinte, garantindo que este tenha o mesmo direito de manifestação e participação no processo.
- Incerteza quanto aos efeitos de garantias apresentadas no bojo do contencioso administrativo e judicial
A redação do art. 47 da Lei Complementar nº 214/2025 estabelece, como condição para a fruição do crédito pelo adquirente, a extinção do crédito tributário devido na etapa anterior. Embora tal previsão busque assegurar a adimplência na cadeia de não cumulatividade do IBS e da CBS, emerge um conflito com relação às hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, conforme previstas no art. 151 do Código Tributário Nacional (CTN).
Em particular, o art. 206 do CTN reconhece expressamente que, nas hipóteses de suspensão da exigibilidade – como o depósito do montante integral e a concessão de medida liminar ou tutela antecipada – o contribuinte não pode ser tratado como inadimplente. Trata-se de medida essencial para assegurar o pleno exercício do direito de defesa e de acesso ao Poder Judiciário, garantias constitucionais fundamentais.
Contudo, à luz da LC nº 214/2025, existe um risco concreto de que, ao contestar administrativamente ou judicialmente débitos de IBS e CBS, os contribuintes vejam seus clientes privados do direito ao crédito, em razão da ausência de extinção formal do crédito tributário. Essa situação coloca o contribuinte em severa desvantagem: a mera contestação legítima pode acarretar sanções econômicas graves e comprometer a neutralidade da tributação.
Tal consequência, além de ferir o princípio da ampla defesa e do contraditório, cria um efeito inibidor ao direito de petição e ao acesso à Justiça, revelando-se uma forma indireta de obstáculo à jurisdição e à revisão legítima dos lançamentos fiscais.
Assim, considerando que o PLP nº 108/24 tem como objeto a regulamentação do processo administrativo tributário do IBS e da CBS e que não há ainda qualquer dispositivo que trate da matéria acima, impõe-se a necessidade de aprimoramento do PLP nº 108/2024, no sentido de garantir, de forma expressa, que a suspensão da exigibilidade nos moldes do CTN não prejudica o direito ao crédito pelos adquirentes subsequentes na cadeia. Essa medida é fundamental para assegurar a coerência normativa, a efetividade dos direitos constitucionais e a manutenção da lógica da não cumulatividade.
Diante do exposto, fica claro que a proposta do PLP 108/2024 representa um passo importante na regulamentação do novo sistema tributário brasileiro, mas carece de ajustes pontuais que garantam isonomia entre as partes, coerência normativa e previsibilidade nas relações jurídicas. As contribuições reunidas neste artigo resultam de um esforço técnico e propositivo voltado à construção de um sistema tributário que, de fato, funcione na prática. O objetivo não é inviabilizar o projeto, mas colaborar para que sua implementação reflita os pilares da reforma tributária: simplicidade, neutralidade, transparência e justiça fiscal. Um processo administrativo bem estruturado é condição essencial para que esses princípios se consolidem na realidade dos contribuintes e das administrações tributárias. O momento é de diálogo qualificado — e de construção conjunta de soluções duradouras.
André Menon, Fernanda Sá Freire Figlioulo e Raquel Novais são sócios no Machado Meyer Advogados. Mércia Braga e Victória Tortorelli são advogadas no Machado Meyer Advogados.
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