Empresas que operam com SaaS e serviços digitais podem ter aumento na carga tributária de 529%, mostra simulação

Foto via Freepik

Por Ayla Lima, Lilian Ribeiro, Patricia Morando e Thaís Carneiro

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da Lei Complementar nº 214/2025, o Brasil inaugura um novo capítulo no sistema tributário nacional. As discussões em torno da criação da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), tributos que substituirão os atuais PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI, giram em torno da promessa de simplificação, neutralidade e não cumulatividade plena. Mas, na prática, os impactos variam profundamente conforme o setor, e poucas atividades sentirão esses efeitos tão diretamente quanto o setor de tecnologia, especialmente aquelas empresas que operam com SaaS, serviços digitais, contratos recorrentes, estrutura terceirizada e cloud computing.

Neste artigo, exploramos os impactos concretos da reforma sobre esse setor a partir do estudo técnico da operação de uma empresa real, que para fins de anonimizá-la chamaremos aqui de empresa M — especializada em soluções SaaS para o varejo, com foco em compliance LGPD e inteligência operacional de gôndola. A análise foi conduzida no âmbito do Programa Avançado de Implementação da Reforma Tributária, promovido pela Trevisan Escola de Negócios, e envolveu simulações financeiras, cenarização fiscal e construção de um planejamento estratégico de transição.

A nova realidade tributária: mais alíquota, menos crédito

No regime atual, a empresa M é tributada pelo Lucro Real, não cumulativo, com incidência de PIS (1,65%), Cofins (7,6%) e ISS (2%) sobre a receita bruta. A carga total estimada gira em torno de 11,25%. A grande maioria dos seus prestadores são empresas optantes pelo Simples Nacional, contratados como PJs, o que hoje não impede a empresa de se creditar de PIS/Cofins à alíquota cheia de 9,25% sobre esses pagamentos.

Com a Reforma, a dinâmica se inverte. A nova legislação restringe o aproveitamento de créditos às operações efetivamente tributadas por CBS e IBS. Como MEIs, optantes do Simples Nacional e pessoas físicas estarão fora do escopo de incidência plena, não serão gerados crédito integrais a partir desses pagamentos. Isso representa uma perda relevante para empresas como a M, cuja estrutura está fortemente baseada em prestadores desses perfis.

Mais grave ainda é o fato de que a empresa M não possui uma cadeia física relevante de insumos, o que limita drasticamente a sua possibilidade de gerar créditos tributários nas aquisições. Isso leva a um desequilíbrio entre os tributos pagos na saída (venda dos serviços) e os créditos gerados nas entradas (compra de insumos), elevando de forma abrupta a carga tributária líquida.

Da carga líquida de 4,8% para 21% — ou mais

Para ilustrar esse cenário, realizamos uma simulação com base na estrutura real da empresa M. Considerando uma receita bruta mensal de R$ 100.000,00, a carga tributária total no regime atual corresponde a R$ 11.250,00, com aproveitamento médio mensal de R$ 7.345,00 em créditos — o que resulta em uma carga líquida de R$ 3.905,00.

Com a aplicação da nova sistemática, mantendo a estrutura atual de prestadores (PJ/ Simples Nacional), a alíquota de saída estimada de 28% se mantém, mas os créditos caem para R$ 3.421,00 mensais, considerando que a folha e os principais prestadores não gerarão créditos integrais. O resultado é uma carga líquida de R$ 24.579,00, ou seja, um aumento de 529%.

A única forma de mitigar esse salto é por meio da reestruturação da base de fornecedores e da forma de contratação. Na mesma simulação, ao substituir os prestadores por empresas em regimes como Presumido ou Simples Nacional Híbrido (que geram crédito de 19,6%) e considerar 2,8% adicionais de crédito sobre software e cloud, a carga líquida final pode cair para 6,4% — uma redução de mais de 70% em relação ao cenário “inercial”.

A armadilha do split-payment: tributa-se na saída, mas credita-se 60 dias depois

Outro aspecto crítico da nova legislação é a introdução do split-payment, mecanismo em que o tributo passa a ser recolhido diretamente no momento do pagamento da fatura pelo cliente. A CBS e o IBS são destacados no documento fiscal e retidos na operação, sendo recolhidos automaticamente.

Por outro lado, o crédito sobre as aquisições, como no caso de serviços de cloud computing, só poderá ser apropriado após 60 dias da operação, conforme previsto no artigo 53 da LC 214/2025. Isso cria um descompasso relevante no fluxo de caixa.

Em um cenário recorrente como o da M, o imposto é pago antecipadamente na compra de insumos e só poderá ser recuperado dois ciclos depois. Essa nova realidade exige planejamento financeiro mais rigoroso e possível renegociação de prazos com fornecedores.

Precificação, contratos e relacionamento com o cliente

A elevação da alíquota de saída de 11,25% para 28% levanta a questão: é possível ou desejável repassar esse custo ao cliente? A resposta depende do perfil do cliente.

Se o cliente da empresa M for uma empresa tributada no Lucro Real ou Presumido, ele poderá se creditar integralmente dos 28% pagos na contratação, o que reduz seu custo líquido. Por isso, a comunicação se torna elemento estratégico: o aumento de preço bruto precisa ser acompanhado da informação de que o custo líquido final será menor do que no regime anterior.

A título de exemplo:

No modelo atual, o cliente paga R$ 111,25 (considerando um serviço de R$ 100,00 + 11,25% de tributos), mas não pode se creditar de nada se o prestador for do Simples.

Pós-reforma, pagará R$ 128,00 (R$ 100,00 + 28%), mas poderá se creditar integralmente dos R$ 28,00, reduzindo o custo final a R$ 100,00.

A empresa M, portanto, precisa preparar sua equipe comercial, seus contratos e seus canais de comunicação para lidar com essa mudança. Inserir cláusulas de neutralidade tributária nos contratos, adotar a política de preço líquido, informar a alíquota destacada e educar o cliente empresarial sobre o crédito gerado serão medidas cruciais para manter a competitividade.

Inteligência fiscal e governança para o novo modelo

A gestão tributária exigida pela reforma não será mais possível por planilhas isoladas ou acompanhamentos mensais. Será necessário o acompanhamento contínuo de KPIs, como:

  • Carga efetiva líquida por cliente ou linha de produto;
  • Índice de erosão de crédito por tipo de fornecedor;
  • Margem pós-CBS;
  • Volume de crédito acumulado e hiato de caixa decorrente do split-payment.

Durante o desenvolvimento do projeto, estruturamos um sistema funcional que conecta dados fiscais, contratuais e operacionais, simulando margens, precificação, alíquotas por fase da transição e níveis de aproveitamento de crédito. Essa solução permitiu visualizar cenários, tomar decisões assertivas e propor um cronograma realista de adequações até 2033, conforme a curva de transição prevista na reforma.

Conclusão: a reforma tributária exige reconfiguração, não adaptação

A análise do caso da empresa M mostra que a Reforma Tributária não afeta apenas a contabilidade. Ela reconfigura contratos, fornecedores, estratégia comercial, fluxo de caixa e inteligência gerencial. Empresas de tecnologia que operam em modelo recorrente, com alta digitalização e forte uso de terceiros devem antecipar a reestruturação de sua cadeia e posicionamento de mercado.

Para sobreviver no novo modelo, não basta esperar a regulamentação final. É preciso agir agora: rever contratos, simular impactos, negociar fornecedores, treinar a equipe comercial, educar os clientes e adotar ferramentas que integrem gestão fiscal e inteligência de negócios.

A Reforma é inevitável. A desorganização, não!


Ayla Lima, Lilian Ribeiro, Patricia Morando e Thaís Carneiro são participantes do Programa Avançado de Implementação da Reforma Tributária – Trevisan Escola de Negócios


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

Rolar para cima