Ir para o conteúdo

Fim dos incentivos abrem caminho para um novo fomento cultural municipal

Por Danielle Camargo

A reforma tributária mudará radicalmente a forma como ocorre o financiamento da cultura. Com o fim dos incentivos fiscais tradicionais via ISS e IPTU, abre-se uma nova fase para os municípios e o setor cultural. Esse movimento desafia a estrutura atual, mas também abre oportunidades de inovação e fortalecimento institucional.

O fim desses instrumentos, previsto na Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentado pela Lei Complementar nº 214/2025, é uma das mudanças mais silenciosas e impactantes da reforma. Para a cultura, significa que os tradicionais mecanismos de incentivo via isenção de ISS ou abatimento de IPTU tendem a desaparecer. Pequenas entidades, coletivos culturais e artistas locais, que tinham no incentivo fiscal uma ponte direta com patrocinadores, agora enfrentam o risco de fragilidade.

Ao mesmo tempo, esse novo desenho tributário cria uma janela estratégica: se os municípios passarem a receber recursos diretos do IBS com base no consumo, podem estruturar políticas próprias de fomento cultural financiadas com esses novos fundos, desde que se organizem com governança, conselhos ativos e planos de cultura robustos. Isso coloca o setor cultural em diálogo direto com a arrecadação do consumo, mesmo sem os mecanismos tradicionais de renúncia fiscal.

Dito isso, é evidente que durante o período de transição (2026 a 2033) há risco, sim, de retração de recursos culturais. Mas também há oportunidade de reinvenção institucional, caso os gestores culturais saibam se articular e os municípios compreendam o potencial estratégico da cultura na economia local. Essa reinvenção passa por:

  • Fortalecer os fundos municipais de cultura;
  • Criar legislações locais que vinculam parte da receita cultural à nova fonte (IBS);
  • Inovar com formas de captação direta e financiamento coletivo;
  • Estimular a economia criativa como vetor de arrecadação

É o fim de uma era e o início de outra.

Ressalta-se que esta transformação não é meramente uma alteração fiscal. Trata-se de uma mudança sistêmica que impulsiona uma reengenharia das políticas de fomento cultural. A necessidade de adaptação transcende a conformidade fiscal, exigindo uma reflexão sobre a própria filosofia de apoio à cultura, buscando modelos mais resilientes e equitativos.

Além disso, a Emenda Constitucional nº 132/2023 (artigo 156, inciso X da CF/88) estabelece que, em relação ao IBS, não serão concedidos novos incentivos ou benefícios financeiros ou fiscais, salvo exceções constitucionais. Os incentivos existentes, vinculados aos tributos que serão unificados, serão gradualmente eliminados até a plena implementação da reforma em 2033. Para mitigar os impactos dessa descontinuidade, a Lei Complementar n°214/2025 criou o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais (FCBF), que visa reembolsar as empresas afetadas pela extinção dos incentivos fiscais. O FCBF terá um valor inicial de R$ 8 bilhões em 2025, crescendo para até R$ 32 bilhões em 2028, e será reduzido gradualmente até seu encerramento em 2033.

É fundamental compreender que, embora o FCBF compense as empresas pela perda dos benefícios fiscais, ele não aborda diretamente a lacuna de financiamento para os projetos culturais que antes dependiam desses incentivos.

No tocante ao modelo de renúncia fiscal, sabe-se que ele tem sido alvo de diversas críticas e desafios inerentes. Uma das principais ressalvas é o fato de que a destinação de recursos públicos, por meio desses incentivos, acaba ficando nas mãos do setor privado. Isso pode levar à priorização de projetos com maior apelo de marketing ou potencial de retorno de imagem para as empresas patrocinadoras, em detrimento de iniciativas que, embora essenciais para a diversidade cultural ou para o atendimento de políticas públicas, não se encaixam na lógica de mercado. Projetos de menor porte ou com menor visibilidade comercial frequentemente enfrentam dificuldades de captação. Além disso, a prática de concessão de amplos benefícios fiscais por estados e municípios, conhecida como “guerra fiscal”, por vezes comprometia a própria capacidade de arrecadação dos entes federativos.

Assim, o fim desses incentivos, embora visto inicialmente como uma perda, representa uma oportunidade para corrigir essas ineficiências sistêmicas. A descontinuidade do modelo de renúncia fiscal abre caminho para uma transição de um sistema de financiamento reativo e impulsionado pelo mercado para um modelo proativo e orientado por políticas públicas.

Isso permite que os fundos públicos sejam alocados diretamente, com base em objetivos de política cultural e princípios democráticos, potencialmente promovendo um cenário cultural mais diversificado e equitativo. É um momento de redefinir o papel do Estado no apoio à cultura, buscando maior alinhamento entre investimento público e os direitos culturais da população.

Nesse contexto, as entidades culturais e os municípios precisarão desenvolver novas propostas de valor para o engajamento corporativo que transcendam os benefícios fiscais. Essas propostas poderiam focar em compromissos de ESG (Environmental, Social and Governance), visibilidade de marca, relações comunitárias ou modelos filantrópicos diretos. O desafio, portanto, não é apenas encontrar novas fontes de financiamento, mas também cultivar novas motivações para o apoio do setor privado em um cenário pós-incentivos.

Apesar dos desafios impostos pela Reforma Tributária, o cenário pós-2026 abre um novo e promissor paradigma para o fomento cultural municipal. A reforma não significa o fim do apoio à cultura nos estados e municípios, mas sim uma mudança fundamental na sua metodologia. Com a arrecadação do IBS sendo incorporada diretamente ao orçamento público municipal, a decisão de destinar esses recursos a projetos culturais torna-se uma prerrogativa política e de competência de cada ente federativo, exercida dentro de sua autonomia.

A reforma cria uma janela de oportunidade para repensar o sistema de financiamento à cultura como um todo, incentivando a criação e o fortalecimento de leis estaduais e municipais específicas para o fomento direto. Isso permitirá ampliar os mecanismos de apoio e atender a uma gama mais diversificada de demandas do setor, incluindo projetos que não se encaixam na lógica de mercado dos incentivos fiscais. Essa transição também impulsiona a inovação nos modelos de gestão de fundos culturais. Com os municípios ganhando maior controle direto sobre o financiamento cultural a partir das receitas do IBS , a necessidade de mecanismos robustos para gerir esses fundos torna-se evidente. Não se trata apenas de alocar dinheiro, mas de garantir governança eficaz, transparência e medição de impacto. Modelos existentes de fomento direto oferecem valiosas referências.

A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), instituída pela Lei nº 14.399/2022, é um exemplo notável de fomento direto, destinando R$ 3 bilhões anuais por cinco anos a estados, Distrito Federal e municípios. Os objetivos da PNAB incluem estimular o fomento à cultura pela União, Estados e Municípios, garantir financiamento e democratizar o acesso. O BNDES Fundo Cultural também se destaca, oferecendo apoio não reembolsável para a preservação do patrimônio e o incentivo à cadeia produtiva da cultura, direcionado a entidades privadas sem fins lucrativos e públicas. As lições aprendidas com esses modelos sublinham a importância da escuta à comunidade, da elaboração de Planos de Ação e Planos Anuais de Aplicação de Recursos (PAAR), e da necessidade de conselhos, planos e fundos de cultura instituídos para a gestão eficaz dos recursos.

É crucial que o fomento cultural seja alinhado aos direitos culturais e às políticas públicas de cultura. A reforma é um momento propício para orientar o financiamento pelo pleno exercício desses direitos, distanciando-se da lógica de mercado dos incentivos fiscais. Essa mudança para o financiamento direto exige e possibilita um fortalecimento da governança cultural municipal. 

Além disso, podem ser explorados potenciais novos mecanismos e fontes de financiamento. A A articulação com fundos patrimoniais (endowments) culturais, capazes de gerar rendimentos contínuos para o setor, também merece consideração. A busca por parcerias internacionais e a complementação de recursos por meio de fundos de fomento de outras esferas (federal, estadual) serão igualmente importantes para garantir a sustentabilidade do setor.

Para navegar com sucesso no novo cenário tributário e maximizar as oportunidades de fomento cultural pós-2026, é imperativo que municípios, o setor cultural e as empresas adotem estratégias proativas e adaptativas. 

A Reforma Tributária não é apenas um movimento técnico. Ela revela, de forma implícita, quais setores a sociedade considera prioritários. Se a cultura quiser sobreviver, e florescer, nesse novo ecossistema fiscal, precisará agir agora.  


Danielle Camargo é fundadora do JurisDan. Advogada especialista em inovação tributária e IA aplicada ao Direito. Atua com economia criativa, cidades inovadoras, startups e transformação digital de políticas públicas. Consultora em incentivos fiscais para negócios de impacto.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

Rolar para cima