
A reforma tributária brasileira, consagrada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, trouxe profundas alterações ao sistema de incentivos fiscais estaduais. Para mitigar os impactos da extinção desses benefícios – até então garantidos até 31 de dezembro de 2032 para empresas beneficiadas nos ditames da LC 160/2017 – foi criado o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais. Entretanto, apesar de sua proposta conciliatória, o fundo já nasce envolto em polêmicas e incertezas.
Como Funciona o Fundo
O Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais visa compensar, entre 2029 e 2032, empresas que terão reduzidos gradualmente os incentivos fiscais de ICMS em razão da transição para o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Para que a referida compensação seja possível, a reforma previu que a União destinará ao fundo, entre 2025 e 2032, R$ 160 bilhões (em valores de 2023, corrigidos pelo IPCA), distribuídos anualmente nos seguintes valores:
- R$ 8 bilhões em 2025
- R$ 16 bilhões em 2026
- R$ 24 bilhões em 2027
- R$ 32 bilhões em 2028 e 2029
- R$ 24 bilhões em 2030
- R$ 16 bilhões em 2031
- R$ 8 bilhões em 2032
A compensação se restringirá aos benefícios onerosos concedidos até 31 de maio de 2023, mesmo que prorrogados ou renovados posteriormente, desde que cumpridas as condições da norma concessiva. O valor a ser compensado deve ser apurado mensalmente, com informações prestadas à Receita Federal, que terá até 60 dias, em regra, para reconhecimento do direito ao crédito e mais 30 dias para a liberação dos recursos.
Polêmicas e Incertezas
1. Centralização pela União
Uma das principais controvérsias em volta do tema reside no fato de a União ser a administradora e financiadora do fundo, uma vez que os referidos benefícios foram originalmente concedidos e, consequentemente, gerido pelos Estados. Esse deslocamento de poder gera desconforto federativo e esvazia um dos principais argumentos utilizados pelos tributaristas na defesa das empresas contra a tributação federal sobre subvenções estaduais: a autonomia dos estados na concessão desses incentivos, e notadamente, a transgressão ao pacto federativo.
Até recentemente, a referida tese de que benefícios estaduais não poderiam ser tributados pela União foi acolhida em diversas decisões judiciais, especialmente após a publicação da Lei 14.973/2023, que buscou legalizar a tributação das subvenções estaduais. Agora, com a União assumindo o protagonismo na administração e repasse dos valores, esse argumento perde força, e deixa as empresas, cujo investimento inicial impulsionado por ocasião dos referidos benefícios, refém da União.
2. Limites Orçamentários e Risco de Inadimplência
Outro ponto sensível é a ausência, até o momento, de previsão orçamentária para o aporte de recursos ao fundo no ano corrente, conforme apontado por especialistas e pela própria tramitação orçamentária federal. Isso gera incertezas quanto à capacidade do Fundo de financiar toda a repercussão financeira das empresas beneficiadas decorrente da perda gradual dos incentivos.
Inclusive a própria LC 214/2025 prevê a possibilidade de insuficiência de recursos, em seu art. 404, que aduz nesse caso ser necessário complementação dos recursos do fundo pela própria União, porém limita esse complemento aos valores previstos no projeto de lei orçamentária anual. Ou seja, se o valor devido às empresas superar o montante orçado, a compensação poderá ser insuficiente, gerando insegurança jurídica e possíveis litígios sobre direitos líquidos e certos decorrentes de benefícios já concedidos pelos estados.
“A União deverá complementar os recursos de que trata o § 1º do art. 12 da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, em caso de insuficiência de recursos para a compensação de que trata o § 2º do mesmo artigo, limitado aos montantes previstos no projeto de lei orçamentária anual.” (Art. 404, LC 214/2025)
Diante desse cenário, como garantir a efetividade da compensação a que têm direito, baseada em atos concessivos válidos e anteriores à reforma? O tema certamente alimentará novos debates e, possivelmente, disputas judiciais nos próximos anos.
3. Diferença Entre a Repercussão Econômica do Fundo e o Valor do IBS Pago: Impacto no Caixa das Empresas
Um aspecto crucial e que merece destaque é a possibilidade de que o valor devolvido pelo Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais seja inferior ao montante efetivamente pago pelas empresas a título de IBS a partir de 2029, gerando um impacto negativo no caixa das companhias.
Para ilustrar, imagine uma operação interestadual com valor de R$ 200, tributada pelo ICMS à alíquota original de 12%. Antes da reforma, essa operação geraria um ICMS devido de R$ 24,00, porém, devido ao benefício fiscal de crédito presumido de 100%, por exemplo, esse valor seria integralmente lançado à crédito nos registros fiscais da empresa beneficiada, resultando em custo tributário zero de imposto estadual para o contribuinte.
Com a reforma, no ano de 2029 a alíquota do ICMS será reduzida em 10%, passando para 10,8% nesse exemplo, e o benefício fiscal de crédito presumido será ajustado
proporcionalmente. Assim, nesse caso o ICMS devido será de R$ 21,60, e a repercussão econômica do benefício (a diferença entre o ICMS com alíquota integral e o ajustado) será de R$ 2,40 – valor que o fundo deverá devolver à empresa para compensar a perda do benefício.
No entanto, nesse ano a tributação de IBS também ocorrerá, considerando 10% da alíquota praticada pelos entes – ICMS cai 10%, IBS aumenta 10%, essa é a regra de transição para 2029. Assim, considerando essa mesma operação à alíquota estimada de 18,7%, a operação será tributada à alíquota efetiva de 1,87%. Aplicando essa alíquota sobre o valor da operação, a empresa pagará R$ 3,74 de IBS (R$ 200 x 1,87%).
Ou seja, o valor do IBS devido (R$ 3,74) será superior ao valor que a empresa receberá de volta pelo fundo (R$ 2,40). Essa diferença representa um custo tributário adicional que não será compensado, causando uma redução real no caixa da empresa.
Esse descompasso entre o valor do IBS pago e a compensação recebida pelo fundo pode gerar aumento da carga tributária efetiva, pois mesmo com o fundo, as empresas poderão pagar mais tributos do que antes da reforma, além de redução da competitividade, visto que empresas que dependiam fortemente dos benefícios fiscais podem enfrentar dificuldades para manter preços e margens e, inevitavelmente, seu lugar no mercado.
Reflexões Finais
O Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais surge como resposta necessária à extinção dos incentivos estaduais, mas sua execução está longe de ser pacífica. A centralização pela União, a limitação orçamentária e a insegurança quanto à integralidade das compensações são pontos que merecem atenção do empresariado e de toda sua rede técnica de apoio, que nesse caso, alcança majoritariamente os contadores ou profissionais afins que atuam no departamento tributário das empresas, bem como os advogados tributaristas.
Jéssika Frizo Ferraz é Contadora e Advogada. Pós-Graduada em Gestão Fiscal e Tributária e Auditoria Fisco-Contábil. Mestre em Propriedade Intelectual e Tecnologia para Inovação. Presidente da Comissão de Direito Tributário na Subseção Ilhéus em três mandatos consecutivos. Membro da Comissão Estadual de Direito Tributário na Seccional da Bahia. Atuação na área tributária há mais de 17 anos.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.