
Nos últimos dois anos o sistema tributário brasileiro passou por diversas transformações. Entre os protagonistas das mudanças realizadas, destaca-se a Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, responsável por reorganizar a distribuição de algumas competências tributárias entre os entes federativos e introduzir novas formas de tributos.
A EC, entretanto, não desempenhou esse importante papel sozinha: de tempos em tempos, novos projetos de lei impactam e transformam tributos já conhecidos. Atualmente aguardando apreciação pelo Senado Federal, o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024:
Institui o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços – CG-IBS, dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, sobre a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação do IBS, e sobre o Imposto sobre Transmissão Causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, e dá outras providências.
Neste momento, cumpre-nos analisar especificamente os impactos do referido PLP sobre o ITCMD, especialmente no que se refere à obrigatoriedade da progressividade de suas alíquotas. O ITCMD com a nomenclatura e característica que conhecemos é fruto da Constituição Federal da República do Brasil de 1988, contudo, os impostos sucessórios no país são anteriores à sua própria independência, datando de 1809, com a “décima de heranças e legados”. Historicamente tanto o ITCMD quanto seus antecessores eram aplicados de forma heterogênea, relegando a progressividade do tributo ao segundo plano.
Nessa toada, o PLP 108/2024 busca uniformizar a aplicação do imposto por diversas frentes. O primeiro ponto que merece destaque é a obrigatoriedade – através de seu art. 178 – da aplicação da progressividade no ITCMD, respeitado o limite de 8% estabelecido pela Resolução do Senado nº 9/1992:
Art. 178. A alíquota do ITCMD:
I – será estabelecida na legislação de cada Estado e do Distrito Federal;
II – será progressiva em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação; e
III – observará a alíquota máxima fixada pelo Senado Federal.
Parágrafo único. Os grandes patrimônios, conforme definição em lei específica estadual ou distrital, serão tributados pela alíquota máxima de que trata o inciso III do caput deste artigo.
Importante princípio tributário, a progressividade consiste em aplicar taxas de imposto (alíquotas) crescentes à medida que a base de cálculo (renda, patrimônio, etc.) aumenta. Observa-se assim, que a progressividade enquanto mandatória, busca corrigir distorções históricas que permitiam a aplicação de alíquotas uniformes a transmissões patrimoniais de magnitudes distintas. A modulação da carga tributária conforme o valor transmitido busca, portanto, a justiça fiscal e redistribuição de riqueza, alinhando-se a práticas internacionais de tributação sobre heranças e doações.
Diversos juristas apontam, entretanto, que a operacionalização da progressividade no ITCMD pode enfrenta desafios de diversas ordens na prática, como: a ausência de critérios nacionais objetivos para a definição das faixas de tributação, potencialmente ocasionando insegurança jurídica e fomento das disparidades regionais; o risco de que entes federados com maior pressão arrecadatória adotem alíquotas elevadas mesmo para transmissões de menor valor, comprometendo o princípio da seletividade e onerando desproporcionalmente a classe média, e ainda, o eminente risco de judicialização, sobretudo quanto à definição da base de cálculo, à eventual retroatividade de normas e à possibilidade de bitributação em transmissões transfronteiriças.
Para além da progressão de alíquotas, o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 busca a uniformização da competência territorial para a incidência do ITCMD, dispondo que nas transmissões causa mortis, o imposto será devido, via de regra, no estado onde domiciliado o de cujus ou seu sucessor, aplicando-se a mesma lógica aos doadores e donatários:
Art. 183. É sujeito ativo do ITCMD relativamente a bens móveis, incluindo títulos, créditos e outros direitos e bens incorpóreos: I – na transmissão causa mortis, independentemente da localização dos bens: a) se o de cujus for domiciliado no Brasil, o Estado ou Distrito Federal onde era domiciliado o de cujus; ou b) se o de cujus for domiciliado no exterior, o Estado ou Distrito Federal de domicílio do sucessor;
II – na transmissão por doação, independentemente da localização dos bens: a) em caso de doador com domicílio no Brasil, o Estado ou Distrito Federal de domicílio do doador; ou b) em caso de doador domiciliado no exterior, o Estado ou Distrito Federal de domicílio do donatário; e
III – na transmissão causa mortis ou doação, em caso de transmitente e recebedor domiciliados no exterior, o Estado ou Distrito Federal onde se localizarem os bens, no Brasil.
As novas diretrizes territoriais buscam mitigar a chamada “guerra fiscal” sucessória, prática na qual contribuintes optam por estados com regimes mais brandos para fins de planejamento patrimonial. Contudo, assim como a progressividade, a medida é recebida com críticas e questionamentos, sobretudo acerca dos limites da atuação normativa federal sobre tributos de competência estadual.
Observa-se, portanto, que o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos é alvo de diversas mudanças, visando a aproximação do tributo aos preceitos constitucionais. Todavia, sua efetividade dependerá da cooperação entre os três poderes, seja com a harmonização legislativa entre os entes federativos, com a clareza na regulamentação infralegal pelo Poder Executivo e com a atuação do Poder Judiciário na contenção de abusos e na preservação da segurança jurídica.
Flávia Sant’Anna Benites, sócia do escritório Ernesto Borges Advogados. Coordena o núcleo especializado em Direito Tributário do escritório, papel que exerce desde 2000, no qual representa os interesses de companhias nacionais e multinacionais dos mais variados segmentos, atuando em todos os estados da região Centro-oeste. Foi membro da Junta de Recursos Fiscais do Município de Campo Grande (MS) – JURFIS, no período de 2005 a 2012. Trabalhou como consultora/especialista na empresa de consultoria IOB – Thonson, entre os anos de 1994 até 2000.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.