
Por Redação
A Reforma Tributária sobre o consumo no Brasil, cuja transição começa oficialmente em 2026, ainda é uma incógnita em muitos aspectos. Mas nas grandes companhias do varejo, como a Americanas, os preparativos já estão em curso — e a complexidade é enorme. “Não é uma reforma, é uma revolução tributária”, resume Marcia Balsa, superintendente da área de tax da empresa. Com 23 anos de atuação na área tributária, sendo 16 deles no varejo e 13 na Americanas, ela lidera o comitê responsável por estruturar a adaptação da companhia ao novo modelo.
Formada em Economia pela UFRJ, Márcia entrou na área tributária por acaso — e ficou por paixão. “Comecei como estagiária na área de compras e, quando fui contratada, participei como key user no projeto de implementação do SAP. Durante o projeto, tive bastante interação com o líder de tax. No final, ele me chamou e disse: Márcia, quero te convidar para a equipe de tax, porque você tem o perfil de tributarista. Na hora, me senti lisonjeada — mas hoje percebo que aquilo foi só um jeito elegante de dizer: ‘você é louca o suficiente para isso’. Afinal, é preciso uma boa dose de insanidade para topar viver no mundo tributário brasileiro!”.

Essa paixão agora é posta à prova com a maior mudança no sistema de tributos em décadas. Na Americanas, foi criado recentemente o Comitê da Reforma Tributária, envolvendo todas as áreas da empresa, mas principalmente as áreas de tributos e tecnologia. “Estamos nos preparando para 2026, que é o período de teste”, explica Marcia. “Muita coisa ainda não foi regulamentada, mas o que podemos fazer agora é entender e avaliar os impactos, principalmente na formação de preços de mercadorias e prestação de serviços, além da implementação das Notas Técnicas ENCAT já publicadas”.
Márcia detalha que a reforma vai mudar a forma de pensar de várias áreas das companhias. “Na área comercial, por exemplo, será preciso analisar os preços das diversas mercadorias, desde alimentação, que tem a cesta básica com alíquota zero, cosméticos, higiene e limpeza, até eletrônicos”. Além de quantificar o impacto nas compras e vendas, aponta ela, será preciso incluir a área jurídica, que vai ter que revisar os contratos, a área de logística, que está atenta à mudança na concessão de benefícios fiscais, por exemplo.
Para Márcia, uma das áreas mais desafiadas será a de TI (Tecnologia da Informação), responsável por estruturar os sistemas que darão suporte à nova lógica de apuração, emissão de documentos e cumprimento de obrigações acessórias. “A área de TI vai precisar redesenhar completamente fluxos sistêmicos, adaptar ERPs e garantir que as informações trafeguem de forma integrada e conforme as novas exigências legais”, enfatiza.
A calculadora tributária e o papel do varejo
Um dos principais projetos em curso é o desenvolvimento de uma “calculadora da reforma tributária”, capaz de estimar os efeitos do novo sistema em cada etapa da operação, do fornecedor ao consumidor final. “É imprescindível para entendermos o impacto desde o preço negociado com o fornecedor até o reflexo final no P&L (lucros e perdas)”, diz. A ideia é que a ferramenta seja usada até pela área comercial, para embasar decisões de compra e negociações dos novos preços com os fornecedores.
Marcia destaca que esse trabalho é particularmente sensível no varejo, setor com margens apertadas e alta exposição ao consumidor. “O varejo está na ponta da cadeia. Ele vai ser importante para balizar o repasse da carga tributária. Se um item da cesta básica, por exemplo, tiver 100% de redução de imposto, como o fornecedor vai refletir isso no preço? E como o varejista vai repassar para o consumidor?”, questiona. Para ela, o comportamento do preço final será determinante para a percepção da reforma pela população.
Tecnologia e o desafio do split payment
A reforma aposta grande parte do seu sucesso ao modelo do split payment, no qual o imposto será retido automaticamente no momento do pagamento, ainda no ponto de venda. Para Márcia, este mecanismo vai trazer transparência e combate à sonegação. No entanto, ela destaca que a tecnologia ainda está em construção. “Essa tecnologia não existe no mundo. Vai ser necessário investimento tanto das empresas quanto do governo.”
Como conta, hoje o processo de compliance é baseado na apuração do imposto, geração de SPED, análise dos créditos e débitos, geração da guia de pagamento que será paga na data de vencimento do imposto e entrega das obrigações acessórias. Com o novo modelo, tudo muda. “O fluxo do compliance vai mudar completamente. E vamos ter que conferir isso também, garantir que o imposto foi retido corretamente no processo do Split Payment, desde a boca do caixa, no caso do varejo. É uma mudança muito grande na forma de trabalhar da área tributária.”
Um ano de cada vez
De acordo com Márcia, a Americnas adota uma abordagem pragmática sobre o cronograma da reforma. “Vamos um ano de cada vez”. Para 2026, que é o período teste, o foco da empresa será implementar os campos para os quais já foram publicadas notas técnicas dos documentos fiscais. “No varejo, lidamos com diversos documentos fiscais, como a NFCE (cupom fiscal eletrônico), a NFe (nota fiscal eletrônica) o CTE (Conhecimento de Transporte Eletrônico) e as notas de serviço. Cada um exigirá adequações no XML, o formato digital dessas emissões.”
Outro ponto de atenção está na Lei Complementar 214/2025, que trouxe a previsão de que será dispensado o pagamento do 1% de alíquota-teste mediante o cumprimento das obrigações acessórias. O período servirá de calibragem tanto para o governo quanto para as empresas, que poderão testar seus sistemas de compliance durante o período de teste.
No relacionamento com os fornecedores, especialmente os de menor porte, a Americanas prevê um esforço de capacitação. “A gente tem uma proximidade muito grande com os nossos fornecedores. Vamos trabalhar esse entendimento em conjunto. Para 2027, quando começar a mudança efetiva de preço, essa aproximação vai ser essencial.”
Créditos acumulados e o alerta para 2032
Um dos pontos preocupantes para o varejo é o acúmulo histórico de créditos tributários. “O varejo é o último elo da cadeia e acumula créditos. Em 2032, quando termina a transição, esses saldos serão parcelados em 240 vezes”, alerta. “É preciso criar estratégias para monetizar esses créditos antes disso.”
A questão afeta diretamente o fluxo de caixa das empresas. “O parcelamento do crédito acumulado pode trazer impacto no caixa sim, mas depende de cada empresa e de cada caso. É um ponto que precisa ser olhado com cuidado.”
Preço e contratos sob nova lógica
A reformulação dos contratos e da precificação é outro aspecto que preocupa. “Vai ser um desafio para todos os segmentos, especialmente os prestadores de serviços, que podem ver as alíquotas saltarem para quase 30%”, destaca. No caso do varejo, o impacto é direto no preço final. “Dependendo do preço que você colocar na prateleira, você não vende. O comprador vai precisar entender exatamente o impacto da nova tributação para negociar bem com os fornecedores.”
Para Márcia, o momento é de transformação intensa, mas também de oportunidade. “Vejo positivamente essa fase. O Brasil precisa mudar, se adequar ao modelo mundial. E fico feliz de estar na área tributária justamente agora, e ser protagonista nessa transformação.”
Ao final da conversa, ela volta ao mantra que repete dentro da empresa: “É um ano de cada vez”. Com a complexidade do sistema brasileiro, não poderia ser diferente.