Presidente de associação do Carf defende amenizar multas no PLP 108 e reconhece avanço com câmara de integração de contencioso

Ana Cláudia Borges
Entrevista com Ana Cláudia Borges foi realizada presencialmente – Foto: Gabriel Benevides via Portal da Reforma Tributária

Por Gabriel Benevides, de Brasília

A presidente do Aconcarf (Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf), Ana Cláudia Borges de Oliveira, avalia que o parecer do senador Eduardo Braga (MDB-AM) do 2º projeto de regulamentação da tributária (PLP 108 de 2024) amenizou parte das determinações sobre multas aos contribuintes ao fazer a diferenciação entre quem declara ou não dados.

Apesar disso, a conselheira avalia que há uma dosimetria pesada. Ela sugere a retirada de algumas das multas e também a unificação de penalidades. A consequência das punições em excesso pode ser o incentivo ao contencioso.

“Nesse sentido de fazer um cenário de corrigir injustiças, muitos estudos mostravam que ele poderia ter avançado mais com essa questão da multa. Ainda tem muitas multas ali dentro, ele deixou infinidade de infrações que se pode cometer”, declara Ana Cláudia em entrevista ao Portal da Reforma Tributária.

Segundo ela, uma das medidas que o texto poderia ter mantido é a retirada dos juros quando houver decisão via voto de qualidade.

A presidente da associação também afirma que outro avanço no parecer de Braga foi a criação da Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). 

O colegiado servirá para uniformizar entendimentos diferentes do Carf e do Comitê Gestor sobre o novo tributo A principal diferença entre o texto atual e o aprovado anteriormente na Câmara é que antes um órgão similar serviria só para consulta. Agora, irá analisar o mérito da jurisprudência.

“O PLP 108 estava quebrando tudo, fazendo um julgamento no âmbito do Comitê de Harmonização –que não foi feito para julgar. Hoje, como vai fazer essa harmonização dentro da Câmara Nacional, eu tiro do Comitê de Harmonização essa ideia de que lá vai ter jurisprudência”, diz.

Mesmo com a nova regra, Ana ainda defende a criação de uma 4ª Seção no Carf para cuidar só do julgamento de IBS. Ela explica que seria necessário colocar mais conselheiros nesse grupo. 

Por outro lado, a conselheira reconhece que não há força suficiente para levar uma proposta pronta sobre o tema ao Congresso.

“Precisaria ter todo um trâmite ali no Congresso para levar isso em frente. E, hoje em dia, não dou conta de fazer isso”, declara.

Leia abaixo a entrevista na íntegra. As perguntas do Portal da Reforma Tributária estão sinalizadas em negrito. As respostas de Ana, em itálico.

Gostaria de pedir para detalhar um pouquinho a sua ideia de criar uma 4ª Seção no Carf para o julgamento do IBS. Essa proposta tem tração, precisaria de algum projeto de lei, alguma mudança via PEC?

A princípio, precisa, sim, de uma mudança. Um projeto de lei, porque o PLP 108, traz uma implementação diferente. Então, se o PLP 108 fosse um instrumento em branco, nesse sentido, conseguiria, administrativamente, fazer essa implementação. Mas, como o PLP 108 traz uma previsão expressa de onde vai ter o julgamento do IBS, hoje em dia, a gente teria que ter outro projeto, ou que o PLP 108 não fosse aprovado do jeito que ele está.

Há planos de realmente tentar emplacar esse projeto, falar com algum congressista, às vezes, até uma emenda para o PLP 108?

Na audiência pública no Senado, conversei com poucos senadores, mas conversei com alguns. E tive uma abertura muito boa deles. Mas, precisaria ter todo um trâmite ali no Congresso para levar isso em frente. E, hoje em dia, não dou conta de fazer isso. E não tenho uma equipe, não tenho uma estrutura para levar. Não sei o quanto seria viável, mas era algo batalhável.

A senhora considera como avanço a mudança do senador Eduardo Braga para criar a Câmara Nacional de Integração do Contencioso com objetivo de harmonização de entendimentos conflitantes do Carf do Comitê Gestor do IBS? 

Acho que é um avanço, porque a ideia do comitê de harmonização, que ele já existia, é que ele sempre foi estruturado para ser parecido com uma Cosit [Coordenação-Geral de Tributação]. Então, não é um órgão de julgamento, a Cosit. É um órgão a que acesso porque estou com alguma dúvida na interpretação da norma.

Então, peguei a norma prioritária, olhei, estou em dúvida, peço para a Cosit dar um pronunciamento. A construção do Comitê de Harmonização é que ele fosse parecido com uma Cosit.

Seria para a elaboração de soluções de consulta, por exemplo.

Nesse sentido. Muito mais de uma ideia prévia do que uma posterior.  O que o PLP 108 fez? Usou a mesma estrutura que a Lei Complementar 214 tinha aprovado. Só que colocou uma palavra lá no meio: “Jurisprudência”. Então, falou que o Comitê de Harmonização ia harmonizar jurisprudência. Isso muda tudo. Estou falando em julgamento. É algo posterior ao que já aconteceu.

[Aqui, Ana dá um exemplo] O fato aconteceu, tem-se um julgamento, julga-se um caso concreto e aparece esse problema. Aí  leva-se para alguém que vai harmonizar a jurisprudência. É totalmente diferente de uma solução de consulta, que seria utilizada em um momento anterior. 

Na minha cabeça, o PLP 108 estava dando um “remexo” de tirar toda a estrutura paritária que tem embaixo. O Carf e o próprio tribunal do IBS, mesmo que a gente não goste como ele está hoje, têm uma estrutura paritária. E o PLP 108 estava quebrando tudo isso, fazendo um julgamento no âmbito do Comitê de Harmonização, que não foi feito para julgar. Hoje, como eu vou fazer essa harmonização dentro dessa câmara nacional, tiro do Comitê de Harmonização essa ideia de que lá vai ter jurisprudência, lá vai ter julgamento.

Eles não trouxeram a paridade nessa câmara nova, mas já são 4 representantes dos contribuintes. É um avanço. Não é o que a gente quer, mas é um avanço.

Caso houvesse essa 4ª Seção, quantos novos conselheiros teriam que ser adicionados ao Carf? A quantidade de conselheiros, hoje, daria conta?

Não. Teria que incluir novos conselheiros. Não sei quantos. Dá até para fazer essa conta. Só que a minha ideia é que esses conselheiros novos da 4ª Seção eles viessem por indicação do Comitê de Gestor. Então, pela indicação do Comitê Gestor, eu ia ter conselheiros que estão vindo de tribunais administrativos estaduais e municipais.

A senhora está dialogando com os estados e os municípios sobre essa eventual atualização?

Da minha parte, não.

Mas eles entraram em contato ou algo do tipo?

Informalmente, só.

Sem projeto concreto, então?

É. Porque eles continuam com medo de perder o poder. Só que acho que, na estrutura que tem hoje, eles estão perdendo mais poder. Só que eles não estão percebendo.

Pode explicar melhor?

[Aqui, Ana dá um exemplo] Eu, como tribunal estadual, como estado, eu tenho uma impressão de que eu tenho um poder porque eu vou indicar pessoas que vão estar fazendo julgamento ali. Acho que ali é uma ideia meio furada. Essa é a impressão que tenho. Alguns tribunais no Brasil, a gente sabe que o Brasil tem uma realidade completamente diferente.

Alguns tribunais no Brasil ainda tem um esquema meio coronelismo. A gente não pode fazer vista grossa pra isso. Tem um rei ditador que vai mandar e desmandar sem regras. Terra sem lei.

Tem Estados que ainda são assim. Então tem alguém que está por trás. Velhas gerações mandando e desmandando como querem. É um poder que você tem? É. Mas não vai servir pra nada. E você vai desaguar no Judiciário.

Eles têm uma impressão de que, tendo um tribunal para julgar dentro do Comitê Gestor, ainda teriam poder de mandar. Só que o poder ali está tão dissolvido que eu tenho uma estrutura de  27 estados, 5 mil municípios dentro de uma representação em que o poder é insignificante. 

Se eu tenho, dentro da estrutura do Carf, um Comitê Gestor, um poder de indicação, mantendo essa estrutura, acho que tenho uma organização muito melhor.

E esse poder que eles acham que vão ter de uma cultura que, para mim, é velha, de achar que manda sem lei, não vai existir de todo modo. Então vai jogar pro Judiciário. Fica sem o poder e perde de ter uma estrutura administrativa que tivesse um julgamento positivo.

Esse cenário incentiva a criação de novos contenciosos?

Sim. Quem acompanha o julgamento sabe que muitas vezes a pessoa perde ali dentro, mas perde satisfeita. Porque ela fala: “Eu vi que o meu processo foi analisado, foi julgado, foi entendido e OK, eu perdi”. Quando você perde e entende que o sistema que tinha ali por trás do julgamento era injusto, faz o que? Recorre.

E às vezes você recorre não porque perdeu, mas porque quer uma mudança na regra de julgamento, porque discorda da estrutura, do próprio resultado. E aí começa a recorrer judicialmente e administrativamente pela insatisfação. E isso é um fato. Acho que o Carf tem a melhor estrutura administrativa hoje e ainda é lotado de problemas. E é o melhor.

E mesmo assim, recebo um mandato de segurança porque alguém judicializou um determinado processo e a ordem vem pronta –em uma estrutura que acho boa. Imagina em uma estrutura ruim. Quantos mandatos de segurança terão?

Fizemos, recentemente, um pedido de Lei de Acesso ao Ministério da Fazenda solicitando estudos, notas técnicas e quaisquer documentos sobre o impacto da reforma contenciária no julgamento do contencioso. Recebemos uma resposta de que esses documentos e dados não existem, ou seja, não foi feito nenhuma estimativa. Isso mostra que há um atraso na antecipação dos cenários do contencioso para a reforma?

Sim, acho que há um atraso. A reforma tributária foi toda pensada na parte material, direito material e, realmente, o contencioso foi deixado de lado. É um problema estrutural também da mente dos tributaristas, que muitas vezes se preocupam com direito material e pouco com a parte processual.

Acho que há um atraso, sim, dentro de ter visto esse problema do contencioso. A gente tem 2 estudos aqui no Brasil, um que é do contencioso administrativo e outro judicial. Um foi financiado pelo BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento]. São problemas estruturais, porque a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] falou para o Brasil que o contencioso tributário é um impedimento para a gente fazer parte da organização. Já era e vai continuar sempre.

Atualmente, olhando para os julgamentos atuais do Carf, de que forma a tributária já está impactando? Ou ainda não chegou?

Ainda não.

Os conselheiros já estão sendo capacitados para a reforma tributária? Tem capacitação também dos outros funcionários?

A gente não tem nenhum treinamento em razão da reforma.

Isso seria uma falha?

Não, porque a gente julgaria CBS. Só que ano que vem ainda entra uma fase de teste que não tem recolhimento efetivo.

Então, vai ter mais a questão das obrigações acessórias e talvez não chegue de imediato processo para CBS. Não sei em quanto tempo chegaria um processo de CBS lá dentro do Carf. 

Então, acho que não é uma falha, porque agora essa Câmara Nacional de Uniformização, ela mexe com o Carf, porque tem representantes lá. 

O novo parecer do PLP 108 fez algumas amenizações sobre as questões das multas. O relator disse que o objetivo é evitar novo contencioso e corrigir injustiça de quem sonega propositalmente e quem sonega, mas declara. Realmente vai evitar contencioso ou poderia avançar ainda mais?

A fala dele está correta, mas ele poderia ter avançado mais. Então, realmente nesse sentido de fazer um cenário de corrigir injustiças, muitos estudos mostravam que ele poderia ter avançado mais com essa questão da multa. Ainda tem muitas multas ali dentro, ele deixou infinidade de infrações que se pode cometer. O discurso está correto, diferenciar o cara que é o sonegador porque é o sonegador sempre e o cara que errou ou cometeu uma falha. Mas ele poderia ter avançado mais nesse sentido.

Pode dar algum exemplo?

Diminuir, consolidar e uniformizar as multas. A questão da retirada da multa e dos juros quando se tem o voto de qualidade lá no Carf é uma medida que vemos pouca efetividade na prática, mas que ele poderia ter mantido também nesse novo cenário. E foi algo que ele tirou. Então, pelo menos manter a igualdade entre os 2 tribunais já seria um avanço.

Fala-se muito em cumprir o prazo constitucional de 360 dias para os julgamentos de contencioso. Por mais que tenha tido essa amenização, a senhora disse que ainda tem muito para avançar. Isso vai no sentido contrário de diminuir o prazo de julgamento de contencioso?

Acho que não faz impacto. Muito pouco. 

Hoje, um problema que a gente tem muito grave lá no Carf, que aumenta muito o tempo de julgamento, é a rotatividade de conselheiros. E essa rotatividade de conselheiros, principalmente dos contribuintes, vem de uma falha estrutural do órgão.

Então, até 2015, quem era conselheiro podia advogar. A pessoa não tinha um salário pelo Carf, continuava advogando, desde que não fosse pelo próprio órgão, e isso mostrou muitas aberturas para a corrupção. Não que hoje o quadro mude, mas claro que, se eu estou dentro da advocacia e estou no órgão, tenho uma porta aberta um pouco maior para um cenário de corrupção.

Então, eles mudaram o perfil, mudaram a forma de remuneração, e agora o conselheiro não pode advogar e tem uma remuneração pelo órgão. Essa remuneração é muito falha, porque temos um regime jurídico extremamente precário de remuneração. Não temos, por exemplo, 13º salário, férias, licença maternidade. Não tem nenhum direito e, ao mesmo tempo, não pode advogar.

E, ao mesmo tempo, eu não sou uma PJ também. Não sou uma PJ, sou uma PF. Não tenho férias, mas sou PF. Tenho um regime de exclusividade, mas não tenho um 13º. Então, tem muitas falhas estruturais que levam a uma rotatividade muito grande.

O presidente do Carf tem tido algumas iniciativas para tentar organizar um pouco o cenário dentro do que ele pode, porque também tem poderes limitados. Então, hoje, eu, conselheira, tenho possibilidade de fazer hora extra. Faço hora extra, ganho remuneração extra, mas eu estou trabalhando mais que o outro cara. E, fora do que seria o OK de eu estar trabalhando. Trabalho, ganho hora extra. 

OK, melhora a minha condição remuneratória. Mas continuo sem férias, continuo sem a licença maternidade integral. Aí, o que o presidente fez? Deu, todo dia, uma hora de desconto de processo para amamentar. Deu a possibilidade de ficar em um sistema híbrido. São medidas, todas, muito boas, mas, se você pega e consegue olhar esse cenário muito de longe, é uma burocracia tão grande dentro da nossa máquina pública. 

Se eu falasse: “Vamos arrumar esses conselheiros, botar salário igual aqui, remuneração compatível com a atividade. Eu tenho que dar exclusividade. OK. Então, tenho que dar férias para esse cara. Ele é exclusivo e tem que ter férias”, arruma essa estrutura. Financeiramente, a gente fez um cálculo que eram valores ridiculamente baixos. Tipo, R$ 30 milhões por ano para resolver tudo.

O total de R$30 milhões ao ano para uma máquina pública é nada. É valor nem que gasta de café dentro de um órgão. Só que o governo não quer. O governo tem burocracias, tem outras ideias, acha que o órgão tem outros problemas. Então, se falo assim: “Vamos consertar tudo da base. Vamos fazer uma coisa decente”, começo a dar celeridade para o órgão. E a gente tem feito ajustezinhos pontuais para tentar arrumar essa velocidade.

O prazo de julgamento diminiu de 2023 para cá. A senhora atribui isso aos “ajustezinhos”?

Sim. 

Tem mais algum ponto que a senhora gostaria de comentar nessa entrevista?

Acho que temos feito um grande trabalho de mostrar quem é o Carf. Essa parte do julgamento tributário, acho que é muito importante no sentido que o tributo é algo que mexe com todo mundo.

O tributo, todo mundo paga, todo mundo vai ter que pagar. E quando tem um órgão que exerce uma justiça fiscal, eu acho que isso é válido.

E o Carf tem avançado com medidas que a gente, de certa forma, coloca a boca no trombone. O Carf dá algumas respostas de ter um avanço. Ontem, estava num evento das tributaristas cariocas no Rio de Janeiro e me pediram para levar dados de mulheres.

A gente teve um avanço muito grande. Hoje, tem uma portaria que coloca a obrigatoriedade de 40% de mulheres, no mínimo. Então, cada um dos gêneros tem que ter no mínimo 40% de representação.

Porque a gente estava antes em um cenário em que nem 20% eram mulheres. E isso aconteceu porque fomos atrás, fizemos eventos, falamos, manifestamos publicamente, colocamos os dados para jogo. E o órgão veio dando algumas mudanças.

Acho que para a reforma tributária, um ponto que eu tenho levantado muito é essa questão dessa estrutura coronelista no Brasil. Ela tem que acabar. O órgão de julgamento administrativo não é órgão de poder político.

Algumas pessoas querem mostrar que estão ali por poder político. E não é essa a ideia.

Os projetos da reforma poderiam acabar com isso de uma forma mais efetiva? 

O PLP 108 poderia, sim, ter avançado na questão do julgamento do IBS com o CBS. Se tivesse, por exemplo, uma 4ª Seção em uma organização melhor no Carf ao invés de trazer um outro tribunal –onde já tem frentes de municípios com problemas judiciais sobre quem vai ser indicado a cada coisa já está problemático ali dentro– conseguiria, sim, dar um avanço nesse sentido.

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