
Por Fernanda Rodrigues, do Tax Is Cool Plus
A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da Lei Complementar nº 214/2025 inaugura um novo capítulo na história do sistema tributário brasileiro. Com a substituição de quatro tributos sobre o consumo (PIS, COFINS, ICMS e ISS) pela CBS, IBS e IS — todos sob uma lógica de IVA não cumulativo (ressalvadas particularidades do IS) — o ambiente de negócios se prepara para uma transformação estrutural e de longo alcance.
No entanto, tenho percebido que uma preocupação ainda não muito discutida e aprofundada é como as novas regras impactam reorganizações societárias, processos de M&A e estruturas empresariais vigentes? A resposta exige uma leitura estratégica, técnica e integrada dos principais eixos da reforma.
Com o intuíto de trazer mais clareza apresento abaixo aspectos importantes que, no contexto da Reforma Tributária, devem ser avaliados durante operações de aquisição ou reorganização societárias.
1. A Reforma como Fator de Reprecificação em Transações de M&A
O valuation de empresas no Brasil, especialmente em operações de M&A, ainda é fortemente baseado em múltiplos de EBITDA. Ocorre que os novos tributos sobre o consumo afetam diretamente esse indicador — tanto na linha de receita líquida quanto nos custos operacionais. Com a mudança da carga tributária setorial (aumento relevante no setor de serviços e possível alívio em setores industriais e exportadores), torna-se fundamental remodelar projeções financeiras sob o novo regime.
Transações que envolvem cláusulas de earn-out, put/call e ajustes de preço com base em desempenho futuro podem se tornar fontes de litígio se não forem previamente adaptadas à nova realidade. Importante ter em mente que, apesar da transição ter seu inícios somente em 2026 com uma alíquota teste, a transparência e a previsão de como a reforma afetará resultados financeiros devem constar expressamente nos SPAs desde já.
2. Fim dos Benefícios Fiscais e Reorganizações Societárias: Uma Nova Lógica de Estrutura e Localização
Com a extinção escalonada dos benefícios fiscais de ICMS e ISS até 2033, estruturas empresariais e societárias construídas com base em incentivos precisam ser urgentemente revistas. O que antes justificava a localização de unidades produtivas ou operacionais em regiões específicas — como a Zona Franca de Manaus, municípios com ISS fixo ou áreas cobertas por Sudam e Sudene — deixará de fazer sentido econômico.
Simultaneamente, a lógica da Reforma exige que as empresas revejam suas estruturas jurídicas. A jurisprudência do CARF e dos tribunais já vinha restringindo reorganizações sem propósito negocial; agora, com a padronização da tributação no destino e o fim da guerra fiscal, estruturas artificiais passam não só a perder eficácia, como também a gerar custos e ineficiências.
Modelos historicamente adotados, como a separação entre industrialização e distribuição ou a fragmentação de operações em municípios e estados em busca de créditos tributários ou alíquotas diferentes dos tributos, perdem relevância. A tendência é a consolidação de estruturas, simplificação societária e relocalização de ativos com base em critérios operacionais — como logística, mão de obra qualificada, proximidade de mercados e sinergia entre unidades.
Esse novo paradigma demanda uma abordagem estratégica e integrada: planejamento tributário, jurídico, logístico e financeiro caminharão juntos para garantir que a estrutura empresarial continue gerando valor mesmo com a extinção dos incentivos fiscais.
3. Pressões sobre Capital de Giro e Necessidade de Stress Test
As mudanças nas regras de crédito, no momento de pagamento dos tributos e na própria estrutura dos impostos implicam desafios severos para a gestão de caixa. A necessidade de antecipar pagamentos, sem correspondência imediata no recebimento de créditos, pode gerar acúmulo de saldos credores e comprometer a liquidez.
Além disso, setores com ciclos longos (educação, saúde, tecnologia) ou que não consigam repassar o aumento da carga ao consumidor final terão seu capital de giro tensionado. Esse aspecto precisa estar previsto não só nas due diligences, mas também nos ajustes de working capital dos contratos de aquisição.
4. Tecnologia e Conformidade: O Investimento Invisível
A transição para o novo sistema exigirá investimentos massivos em ERP, engines fiscais e capacitação técnica das equipes. A convivência de dois sistemas entre 2026 e 2028 (regime atual + novo modelo) impõe desafios operacionais, especialmente para empresas com sistemas legados.
A maturidade digital da empresa-alvo passa a ser um fator de risco ou diferencial competitivo na análise pré-deal. Empresas sem estrutura ou planejamento para a transição poderão enfrentar riscos de compliance, autuações e paralisações.
5. Planejamento Tributário no Novo Paradigma: De Redução de Carga à Criação de Valor
Historicamente, o planejamento tributário no Brasil girava em torno da redução da carga por meio de benefícios, judicializações e estruturas jurídicas específicas. A nova realidade, no entanto, desloca o foco para criação de valor por meio da simplificação, eficiência operacional, transparência e conformidade digital.
Na prática, isso exige que o tributarista seja protagonista no redesenho dos modelos de negócio — desde a reestruturação societária e integração pós-deal, até a revisão da precificação, políticas contratuais e localização de ativos.
6. Conclusão: M&A em Tempos de Reforma — Entre o Risco e a Oportunidade
A Reforma Tributária representa uma ruptura, mas também uma oportunidade única para transformar o modo como fazemos negócios no Brasil. O momento exige que empresas e investidores saiam da postura reativa e adotem uma estratégia proativa, técnica e multidisciplinar.
Para que uma operação de M&A seja bem-sucedida na nova ordem tributária, será preciso antecipar impactos, redesenhar estruturas, reprecificar contratos e garantir conformidade com uma legislação ainda em movimento. O tributarista moderno precisa estar no centro dessas discussões — como agente de transformação e não apenas como guardião de compliance.
Fernanda Rodrigues tem 15 anos de experiência na área tributária, com passagens por grandes empresas como Deloitte, EY, Grupo Boticário e Shell Polônia. Atualmente, atua como Tax Planning Manager no iFood, liderando o projeto de Reforma Tributária, além de ser responsável pela governança e gestão de riscos tributários.
Esse artigo foi escrito por integrantes do Tax Is Cool Plus que fazem parte do Comitê de Reforma Tributária.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.