Tributação sobre doações no Brasil após a reforma tributária: excessos, mitos e lições comparadas com os EUA e a OCDE

Globo do Mundo
Foto: Kyle Glenn vai Unsplash

Por Paulo Ricardo Alecrim

  1. Introdução 

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de 2023, deu início a uma significativa transformação no sistema tributário do Brasil, com ênfase na reestruturação da tributação sobre o consumo. 

A proposta inicial da reforma restringia-se à substituição de tributos como ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo modelo de IVA dual (IBS e CBS), sem contemplar mudanças diretas na tributação sobre o patrimônio.

Entretanto, em decorrência da redistribuição das competências tributárias e da expectativa de neutralidade federativa da reforma, observou-se um movimento paralelo por parte dos entes subnacionais, especialmente os Estados, que buscavam aproveitar a reforma tributária como meio para também revisar suas próprias fontes de receita.

O ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), que inicialmente não era um dos focos da reforma, tornou-se um alvo estratégico para diversos governos estaduais, que visavam aumentar suas receitas por meio do aumento de alíquotas, base de cálculo e ajustes nas faixas de isenção.

Esse movimento, impulsionado por pressões fiscais e pela necessidade de compensar possíveis perdas de receita decorrentes da reestruturação do sistema, ganhou força, levando à alteração da Constituição para estabelecer que o ITCMD deve ser progressivo em função do valor do quinhão, do legado ou da doação. 

Além disso, o projeto de Lei Complementar nº 108/2024 e o projeto de resolução do Senado nº 57/2019 estabelecem disposição que visa implementar um aumento da arrecadação do ITCMD, seja pela elevação da base de cálculo ou da alíquota, que pode chegar a até 16%.

Este artigo propõe uma análise crítica sobre a progressividade e o potencial aumento da carga tributária do ITCMD, comparando a experiência brasileira com o modelo norte-americano, onde o imposto sobre doações e heranças, apesar de possuir um alíquota elevada, apresenta uma faixa de isenção considerável e uma arrecadação proporcionalmente menor em relação ao PIB, em comparação ao Brasil.

Também buscaremos examinar as recomendações da OCDE sobre a função redistributiva desse tipo de tributo, com o objetivo de refletir sobre a eficácia, os limites e os riscos de regressividade da atual tendência de expansão do ITCMD no Brasil.

  1. A Progressividade dos tributos sobre o patrimônio no Brasil: panorama e mudanças recentes

A tributação sobre o patrimônio é uma das mais antigas formas de cobrança de impostos, utilizada desde a antiguidade pelos egípcios, gregos e romanos. No Brasil, os impostos sobre o patrimônio nascem com a Constituição Federal de 1891, sendo que a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, fundiu em um só tributo os impostos de transmissão da propriedade imobiliária inter vivos e de transmissão de quaisquer bens causa mortis (herança e legados), o que persistiu na CF/67.

É apenas com a Constituição Federal de 1988 que ocorre a separação dos impostos sobre transmissão: aos Estados e ao Distrito Federal foi conferida competência para instituir o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos – ITCMD (art. 155, I); quanto à transmissäo inter vivos por ato oneroso de imóveis (ITBI) a competência passou a ser dos Municípios (art. 156, I).

A primeira menção expressa à progressividade dessas espécies tributárias também somente se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e unicamente para o fim de utilizar o IPTU como forma de cumprir a função social da propriedade (finalidade extrafiscal)

Embora alguns municípios tenham buscado se utilizar do dispositivo contido no art. 145, §1º, da Constituição Federal de 1988 para justificar a progressividade do IPTU de uma maneira geral, tal possibilidade foi vetada pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que há incompatibilidade da progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte com o caráter real do IPTU, razão pela qual existiria inconstitucionalidade de qualquer progressividade que destoasse art. 182, §4º, do Texto Constitucional (tributação progressiva como forma de sanção para assegurar a função social da propriedade).

Na verdade, em mais de uma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal firmou, com base nas lições de Airs F. Barreto, o entendimento de que os tributos sobre o patrimônio (doutrinariamente classificados, em regra, como reais) somente poderiam ter alíquotas progressivas se expressamente autorizado pela Constituição (súmulas 668 e 656).

No caso do ITCMD, curiosamente, o entendimento do STF foi em sentido contrário, permitindo-se a fixação de alíquotas progressivas ao tributo, à luz os artigos 145, § 1º; e 155, § 1º, IV, da Constituição Federal.

A grande mudança advinda da Emenda Constitucional nº 132/2023, reside, portanto, no fato do que aquilo que era possibilidade, tornou-se obrigação, de modo que o ITCMD, a partir de sua publicação, sempre deverá ser progressivo.

  1. Arrecadação do ITCMD: mitos populares e o caso norte-americano

Nos últimos anos, o ITCMD tem assumido papel relevante na estratégia fiscal dos estados, especialmente diante da estagnação da arrecadação de outros tributos de competência estadual, como o ICMS. 

Não se quer, de forma alguma, negar a importância dos impostos sobre o patrimônio que, por suas características, estão diretamente ligados à riqueza ou à sua transferência, fatos que indicam uma maior capacidade contributiva do sujeito passivo, especialmente em nosso país, onde se tem uma distribuição de renda extremamente desigual entre as diversas camadas sociais.

Não há dúvidas, também, que o não aproveitamento do potencial tributário dos tributos sobre o patrimônio acaba por desaguar na elevação da tributação sobre outras bases econômicas, como a produção e o consumo, com alto potencial regressivo, já que a população com menor renda acaba consumindo uma maior parte do seu patrimônio para adquirir bens essenciais.

O que se quer questionar, neste pequeno espaço, é: será que estamos reformando para melhor a sistemática de cobrança do ITCMD? A mera elevação das alíquotas ou base tributáveis é suficiente para garantir o caráter progressivo da tributação? 

Frequentemente, os ditados populares nos indicam que, enquanto nos Estados Unidos, se cobra muito tributo sobre a herança, no Brasil, tem-se o movimento contrário, já que a nossa alíquota (de 8%) é muito inferior à de 40% estipulada pela legislação americana. 

Ocorre que tais afirmações, apesar de parecerem lógicas, ao menos do ponto de vista da arrecadação/PIB, não se sustentam, tendo em vista que o Brasil arrecada mais que os Estados Unidos com essa espécie tributária. 

Enquanto a arrecadação dos Estados Unidos da América sobre heranças e doações pelo PIB corresponde a 0,10%, no Brasil temos um percentual de 0,12%, conforme estudo realizado pelo IPEA, com base em dados fornecidos pela OCDE: 

Essa comparação revela que alíquotas elevadas, por si só, não garantem maior arrecadação tributária. Nos Estados Unidos, a participação do imposto sobre heranças na arrecadação total é proporcionalmente menor que no Brasil, apesar da existência de um tributo semelhante. Isso se explica, em grande medida, pela alta faixa de isenção vigente naquele país: heranças de até US$ 11,4 milhões — o equivalente a cerca de R$ 63,2 milhões, com base na cotação de 10 de julho de 2025 (R$ 5,54/US$) — não são tributadas. 

O modelo americano concentra a incidência fiscal sobre grandes fortunas, respeitando de forma mais clara o princípio da capacidade contributiva. No Brasil, por outro lado, as faixas de isenção são significativamente baixas, o que faz com que o ITCMD recaia com maior intensidade sobre a classe média e famílias de menor patrimônio, distorcendo o caráter redistributivo do imposto e gerando efeitos regressivos no sistema.

Destaca-se, ainda, que o Brasil não destoa das práticas internacionais quanto às alíquotas máximas: enquanto o país admite até 8%, a dos países da América Latina é inferior, girando em torno de 6,6%, o que evidencia que o problema central da regressividade brasileira está mais na estrutura da base de cálculo e nas faixas de isenção do que na alíquota em si.

Isso evidencia que o argumento de que o Brasil “arrecada pouco” com o ITCMD não ser vista de forma isolada, ao menos não empiricamente, e que a função primordial desse tributo deve ser analisada sob a ótica da equidade e redistribuição, e não como mero instrumento de incremento fiscal direto.

  1. O que diz a OCDE sobre tributação de heranças e doações?

No relatório “Inheritance Taxation in OECD Countries” (2021), a OCDE reconhece que a tributação sobre heranças e doações pode ser um instrumento relevante para a redução das desigualdades, mas destaca sua baixa eficácia arrecadatória. Em média, os países da OCDE arrecadam apenas 0,19% do PIB com esse tipo de imposto, conforme levantamento realizado pelo IPEA.

Isso reforça, mais uma vez, que o percentual de 0,12% de carga/PIB do Brasil não destoa tanto assim do modelo de arrecadação dos países mais desenvolvidos e integrantes da OCDE, assim como que o principal instrumento para a realização da justa distribuição da carga tributária é a progressividade, e não o mero aumentos do critério quantitativo (alíquota e base de cálculo) da regra matriz de incidência tributária, uma vez que, nos tributos sobre a propriedade, o comportamento da alíquota não necessariamente corresponde ao comportamento da carga tributária.

Com relação ao imposto sobre heranças, a OCDE destaca que pequenas heranças têm papel redistributivo, mas grandes heranças concentram renda. Por isso, recomenda que, para que esse tributo seja mais justo e eficiente, os países membros adotem: (i) faixas de isenção elevadas para transmissões de pequeno valor; (ii) alíquotas progressivas moderadas; (iii) tratamento uniforme entre heranças e doações em vida; (iv) simplificação dos regimes administrativos, especialmente em sistemas federativos; e (v) prevenção à dupla tributação por meio de acordos internacionais.

  1. Propostas de aprimoramento

A elevação isolada da base de cálculo e das alíquotas do ITCMD, como realizada por vários estados em 2023 e 2024, sem contrapartidas de simplificação ou progressividade real, apresenta riscos sérios de regressividade e elisão fiscal.

A ausência de dispositivos eficazes para alcançar ativos transmitidos por meio de estruturas internacionais, por exemplo, como os trusts, bem como fatos geradores ocorridos no exterior, compromete a equidade do sistema. 

Nesse contexto, a incidência do imposto tende a se restringir às transmissões de menor valor, atingindo desproporcionalmente a classe média, enquanto grandes patrimônios são protegidos por planejamentos sucessórios sofisticados e transnacionais, que escapam da incidência tributária.

O modelo atualmente vigente também desincentiva a doação em vida, ao não estabelecer alíquotas diferenciadas que poderiam favorecer a antecipação da transmissão patrimonial. Essa omissão retira do sistema tributário um importante instrumento de indução de comportamentos socialmente desejáveis, como o estímulo à circulação de riqueza, o fomento à filantropia e a redução de litígios sucessórios.

Como visto, a experiência internacional aponta alguns caminhos mais eficientes. Um dos mais relevantes seria a federalização da competência para cobrança do ITCMD, de modo a mitigar disparidades regionais e permitir a instituição de uma faixa de isenção nacional mínima, atualizada periodicamente e indexada a indicadores objetivos, como o valor médio dos imóveis urbanos de cada estado, apurado por órgãos oficiais como o IBGE. 

A centralização permitiria também a adoção de uma tabela de alíquotas progressivas por faixa patrimonial, com critérios uniformes e maior transparência, conferindo racionalidade ao sistema.

Por fim, mostra-se igualmente pertinente o aumento de incentivos fiscais vinculados a doações com finalidade pública certificada, especialmente nas áreas de educação, saúde e habitação de interesse social, a partir de métricas de impacto social comprovado. Tal medida não apenas aprimoraria a justiça distributiva, mas também reforçaria a função extrafiscal do imposto, alinhando-o aos princípios constitucionais da solidariedade e da função social da propriedade

  1. Conclusão

O ITCMD deve ser repensado como um instrumento de justiça fiscal e redistribuição de patrimônio, e não como uma fonte primária de arrecadação. A experiência dos Estados Unidos e as diretrizes da OCDE demonstram que alíquotas elevadas, sem progressividade e isenções razoáveis, tendem a gerar distorções econômicas e sociais. 

A Reforma Tributária oferece uma janela de oportunidade para harmonizar esse imposto, criando um modelo mais justo, previsível e compatível com os objetivos de um sistema fiscal moderno e eficiente.

A federalização da competência, associada à criação de uma faixa de isenção nacional mínima e à implementação de uma tabela progressiva uniforme, representa um caminho promissor para conferir mais equidade e racionalidade ao imposto. 

Do mesmo modo, o estímulo à doação em vida e a concessão de benefícios fiscais a transferências com finalidade pública certificada, especialmente nas áreas de maior vulnerabilidade social, podem devolver ao ITCMD uma função extrafiscal estratégica, que vá além da arrecadação e promova justiça social.

Em um país marcado por profundas desigualdades patrimoniais, um imposto sobre heranças e doações bem estruturado pode ser uma ferramenta poderosa para equilibrar oportunidades e fortalecer o pacto social, inspirado nas melhores práticas internacionais, mas adaptado às peculiaridades do contexto brasileiro.


Paulo Ricardo Alecrim é Sócio no Alecrim & Costa Advogados Associados.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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