Judicialização tributária: a reforma pode reduzir o contencioso no Brasil?

Por Dr. Ivson Coêlho

A judicialização tributária no Brasil é um fenômeno que reflete, acima de tudo, a complexidade do nosso sistema e a dificuldade em se alcançar previsibilidade e equilíbrio na relação entre Fisco e contribuintes. Com a Reforma Tributária em andamento, marcada pela aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a regulamentação trazida pelo PLP nº 68/2024, a expectativa de que haja uma redução desse contencioso ganhou força. No entanto, uma análise mais detida mostra que o cenário não é tão simples e que, em alguns pontos, a reforma pode até ampliar os conflitos.

A redução da judicialização é, sem dúvida, um objetivo relevante. No entanto, ao olharmos para a estrutura que está sendo desenhada, percebemos complexidades que tendem a gerar novas disputas. A criação de conselhos distintos para julgamento de processos administrativos relacionados ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), somada à existência de uma Câmara de Harmonização, parece buscar uniformidade. Mas, na prática, a dificuldade está em compatibilizar entendimentos de órgãos que já nascem distintos, lembrando os desafios enfrentados atualmente entre os Conselhos Administrativos de Recursos Fiscais (CARFs) municipais, estaduais e federal.

Outro ponto preocupante é a composição da Câmara de Harmonização, órgão que terá a responsabilidade de uniformizar o entendimento na esfera administrativa. Diferentemente dos Conselhos Administrativos de Recursos Fiscais atuais, que contam com participação paritária entre contribuintes e representantes do Fisco, a Câmara não prevê qualquer assento para os contribuintes, sendo composta exclusivamente por representantes do poder público. Isso aumenta significativamente a probabilidade de decisões favoráveis à Fazenda Pública e reduz a confiança de que os conflitos possam ser resolvidos administrativamente. Como consequência, é provável que muitas demandas sejam levadas diretamente ao Judiciário, em vez de se buscar solução pela via administrativa.

O problema se agrava com a possibilidade de interpretações divergentes entre os conselhos. Um pode entender que determinada isenção se aplica, enquanto outro decide de forma contrária, criando insegurança e levando o caso para a Câmara de Harmonização. Nessa instância, a limitação da participação dos contribuintes compromete ainda mais a defesa de seus interesses, aumentando o risco de que as divergências não sejam pacificadas de forma equilibrada.

Há ainda um aspecto central relacionado ao IBS: os tribunais administrativos não terão competência para afastar a aplicação de normas consideradas ilegais. Diferentemente da sistemática atual, em que conselhos podem invalidar atos ilegais, a nova configuração não permitirá esse controle. Isso significa que, mesmo diante de ilegalidade ou inconstitucionalidade evidente, a cobrança será mantida. Essa mudança esvazia a utilidade da via administrativa, que passa a servir apenas como instrumento de suspensão da exigibilidade do crédito. Empresas que têm condições de arcar com depósitos judiciais provavelmente preferirão levar suas demandas diretamente ao Judiciário, intensificando a judicialização.

Em tese, a reforma busca simplificação, mas a forma como a estrutura decisória foi desenhada aponta para novos focos de litígio. A ausência de paridade nos órgãos julgadores, a limitação do controle de legalidade e a falta de uniformidade nas decisões administrativas criam um ambiente em que o contribuinte não encontra confiança suficiente para resolver seus conflitos fora da esfera judicial. O resultado pode ser exatamente o oposto do esperado: em vez de diminuir, o contencioso tributário pode ganhar fôlego renovado.

O que se percebe é que a redução da judicialização dependerá não apenas da criação de novos órgãos ou da reorganização do sistema tributário, mas de um compromisso efetivo com o equilíbrio entre as partes e com a segurança jurídica. Sem isso, a promessa de um contencioso mais enxuto corre o risco de não se concretizar, e o Judiciário continuará sendo o principal palco da disputa entre Fisco e contribuintes.


Dr. Ivson Coêlho é advogado, procurador do Município de Manaus, pós-graduado em Direito Tributário pelo CIESA, mestre e doutoramento em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, pós-doutoramento pela Universidade de Salento, na Itália. Já exerceu os cargos de procurador-chefe da Procuradoria do Contencioso Tributário, subprocurador-geral e procurador-geral do Município de Manaus.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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