O novo papel das plataformas digitais na arrecadação tributária

Por Rômulo Coutinho e Nicole Côrte Real

A consolidação da Lei Complementar nº 214/2025 inaugura uma etapa de profunda reorganização do sistema tributário brasileiro. A criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), tributos de base ampla e incidência não cumulativa, representa mais do que uma simples substituição do ICMS, ISS, PIS e Cofins. Ela redefine o modo como as relações econômicas digitais serão observadas pelo Fisco, especialmente no universo dos marketplaces.

Essas plataformas, que nasceram como intermediárias tecnológicas, assumem agora uma posição central no novo modelo de arrecadação. O legislador reformista enxergou nelas um ponto de controle privilegiado, um “nó” capaz de concentrar informações, fiscalizar operações e garantir que o tributo seja recolhido antes que a transação desapareça no fluxo digital. O resultado é um redesenho substancial das obrigações tributárias no ambiente eletrônico.

Durante anos, discutiu-se se os marketplaces deveriam recolher ISS (por prestarem serviço de intermediação) ou ICMS (por supostamente integrarem a cadeia de circulação de mercadorias). A jurisprudência tem reconhecido que, enquanto o marketplace atua apenas como intermediário técnico (sem participar diretamente da operação de compra e venda), sua atividade se enquadra na competência municipal, sujeita ao ISS. Recentemente, o STJ, ao julgar o AREsp nº 2.796.735/MG, reafirmou a natureza intermediária das plataformas digitais, afastando a responsabilização por atos praticados por terceiros justamente porque não integram a cadeia econômica da transação, mas apenas disponibilizam o ambiente tecnológico para sua realização.

Essa aparente estabilidade foi rompida por iniciativas estaduais que tentaram responsabilizar as plataformas pelo ICMS devido pelos vendedores, uma estratégia de combate à evasão fiscal amparada no art. 124, I, do CTN, sob a tese do “interesse comum”. A ausência de uniformidade levou a um mosaico de legislações estaduais conflitantes, cujas inconstitucionalidades têm sido frequentemente questionada perante o Supremo Tribunal Federal.

A reforma tributária buscou pôr fim a essa fragmentação. A LC 214/2025 confere tratamento nacional à matéria, definindo de forma expressa as situações em que as plataformas digitais serão responsáveis solidárias pelo IBS e pela CBS. Trata-se, portanto, da primeira positivacão, em âmbito federal, da figura do marketplace como sujeito passivo indireto no sistema tributário brasileiro.

Situações em que a plataforma responde pelo tributo

A LC 214/2025 prevê duas hipóteses principais de corresponsabilidade dos marketplaces. 

A primeira ocorre quando o fornecedor está no exterior e a plataforma intermedeia a operação, passando a responder solidariamente com o adquirente nacional pelos tributos devidos. A segunda envolve fornecedores nacionais que não emitem nota fiscal eletrônica, hipótese em que a plataforma pode ser chamada a responder pelo IBS e pela CBS. Em ambos os casos, o objetivo é assegurar a existência, no país, de um sujeito identificado e solvente para garantir o recolhimento.

A responsabilidade é afastada se a plataforma comprovar o split payment correto ou a emissão regular da nota fiscal pelo fornecedor. A lei também institui um sistema de cooperação fiscal: o Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal comunicarão à plataforma os vendedores sem inscrição, e a inércia diante da notificação poderá ensejar responsabilidade solidária, reforçando a lógica de corresponsabilidade comunicativa entre Fisco e intermediador.

Por fim, a lei define o conceito de “plataforma digital”: empresas que, além de intermediar o encontro entre compradores e vendedores, controlam elementos essenciais da operação, como o fluxo financeiro, a cobrança, os termos da venda ou a entrega da mercadoria. Excluem-se, portanto, atividades acessórias, como provedores de internet, gateways de pagamento ou buscadores de ofertas.

O desafio do split payment e a nova era do compliance digital

O split payment é um dos pontos mais inovadores e desafiadores do novo modelo, ao determinar a segregação e o recolhimento automático dos tributos no momento da liquidação financeira. Na prática, a plataforma deverá calcular e direcionar ao Fisco a parcela correspondente ao IBS e à CBS antes de repassar o valor líquido ao vendedor, convertendo o pagamento em instrumento de arrecadação direta.

Essa dinâmica transforma o marketplace em agente arrecadador delegado, impondo-lhe deveres típicos do Estado. Para tanto, serão necessários sistemas capazes de cruzar dados fiscais em tempo real, integrar-se às administrações tributárias e garantir a rastreabilidade das operações. A aplicação do princípio do destino exigirá que marketplaces interestaduais ajustem seus algoritmos para identificar o local de consumo e aplicar a alíquota correta, o que implicará custos elevados de tecnologia e conformidade. Durante a transição (2026–2032), coexistirão os regimes antigos (ISS/ICMS) e novos (IBS/CBS), elevando a complexidade contábil e operacional.

A lei prevê certa proteção: se a plataforma cumprir integralmente as obrigações de retenção e informação, não responderá por diferenças de alíquotas declaradas pelo fornecedor. 

Uma das estratégias contratuais mais discutidas no setor é a inclusão, nos contratos de adesão com vendedores, de cláusulas que autorizem a emissão de nota fiscal em nome do fornecedor, bem como o repasse ao vendedor de eventuais autuações decorrentes de irregularidades fiscais. Embora eficaz como mecanismo de compliance preventivo, esse tipo de cláusula exige cuidado jurídico, pois envolve delegação de atos formais e possíveis reflexos de responsabilidade civil. Aqui, é preciso lembrar: em consonância com o art. 123 do CTN, as disposições contratuais relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, salvo disposição de lei em contrário, não afetam o Fisco.

Inclusive, discute-se, no âmbito do Projeto de Lei nº 108/2024, a possibilidade de a plataforma deixar de ser submetida às penalidades pela falta de emissão da nota fiscal pelo fornecedor, desde que emita o documento e recolha o IBS e a CBS em até 30 dias. É debatida, também, a inclusão do §15º ao artigo 22 da LC 214/25, prevendo a possibilidade de a plataforma digital calcular os débitos de IBS e de CBS pelas alíquotas de referência na hipótese de indisponibilidade de informação concernente às regras tributárias aplicáveis ao fornecedor. 

Inobstante tais avanços, que ainda dependem de aprovação definitiva, é fato que o custo de implementação das novas regras tributárias e o risco operacional são expressivos e tendem a impactar a margem das empresas, assim como o preço final das operações.

Responsabilidade informacional e cooperação fiscal

Além da corresponsabilidade financeira, as plataformas passam a ter obrigações acessórias robustas. Deverão reportar periodicamente todas as operações intermediadas, inclusive as realizadas por fornecedores não inscritos como contribuintes.

Esse fluxo de informações cria um ecossistema de cooperação fiscal sem precedentes: a Receita Federal e o Comitê Gestor do IBS comunicarão às plataformas quando identificarem vendedores irregulares; estas, por sua vez, terão o dever de ajustar cadastros e monitorar transações suspeitas.

A fronteira entre intermediação e fiscalização se torna cada vez mais tênue. O Estado transfere às empresas privadas o ônus de controlar a regularidade dos agentes que utilizam seus ambientes virtuais. A inércia ou a negligência da plataforma poderá ser interpretada como omissão tributária, atraindo responsabilidade solidária. 

Sob o prisma arrecadatório, o modelo é eficiente: concentra o controle em grandes agentes e reduz a dispersão fiscal do comércio eletrônico. Mas, sob a ótica da livre iniciativa, impõe riscos relevantes. Ao transferir às plataformas funções típicas do Estado, a lei eleva os custos de compliance, exige estrutura técnica especializada e amplia a incerteza quanto ao alcance da responsabilidade solidária.

Além disso, pode gerar distorções concorrenciais, pois marketplaces menores tendem a não suportar o peso tecnológico e jurídico dessas exigências, favorecendo a concentração de mercado – efeito contrário ao propósito de simplificação e inovação.

Desafios e riscos interpretativos do novo regime dos marketplaces

A LC 214/2025 trouxe avanços relevantes, mas ainda deixa áreas de incerteza. O primeiro desafio é conceitual: a definição de “plataforma digital” é ampla e inclui qualquer ente que controle elementos essenciais da operação, como pagamento, entrega ou definição de condições de venda. Essa conceituação gera insegurança jurídica, pois não diferencia claramente o intermediador neutro, que apenas aproxima as partes, do intermediador ativo, que influencia a formação do preço, a logística ou a cobrança. Essa distinção será decisiva para determinar o alcance da responsabilidade solidária.

Outro ponto de tensão está na distribuição do ônus probatório. A lei impõe às plataformas deveres extensos de compliance e reporte, mas não esclarece quais elementos de diligência são suficientes para afastar a responsabilidade solidária. Ainda não está claro qual é o grau de vigilância exigido: bastará exigir nota fiscal do vendedor ou será necessário auditar sua regularidade cadastral junto ao Fisco? A ausência de critérios objetivos cria espaço para interpretações rigorosas por parte das administrações tributárias, especialmente quando há falhas pontuais no controle interno das plataformas. É preciso, aqui, analisar tais exigências à luz da proporcionalidade e da razoabilidade, como pressupõe uma interpretação dos deveres fundamentais pautada na Constituição Federal de 1988.

Há, também, um problema de proporcionalidade econômica. O legislador tratou de maneira uniforme marketplaces de portes muito diferentes, desde pequenos intermediadores até conglomerados globais. A imposição de obrigações tecnológicas e de compliance idênticas a todos tende a acentuar a concentração de mercado, reduzindo a diversidade de agentes e criando barreiras de entrada para novos competidores.

Outro desafio relevante é a coexistência de regimes durante o período de transição (2026 a 2032). As plataformas terão de lidar, simultaneamente, com o sistema atual (ISS, ICMS, PIS e Cofins) e com o modelo nascente do IBS e da CBS. Essa sobreposição de obrigações pode gerar duplicidades de reporte, conflitos de competência e custos desproporcionais, sobretudo em operações interestaduais ou com múltiplas naturezas jurídicas de fornecedores.

O mecanismo do split payment, embora promova eficiência arrecadatória, também carrega riscos práticos. Ao determinar que o tributo seja segregado no momento da liquidação financeira, o sistema transfere às plataformas a responsabilidade por erros de parametrização, divergências cadastrais ou variações de alíquota que nem sempre estão sob seu controle. Sem um modelo claro de ajustes e restituições, o marketplace pode acabar arcando, na prática, com ônus tributário de terceiros, vilipendiando o princípio da neutralidade tributária.

Persistem, ainda, lacunas quanto ao tratamento de fornecedores estrangeiros não cadastrados, com relação às operações ocasionais realizadas por pessoas físicas, bem como no que diz respeito à compatibilidade entre a nova tributação pelo destino e a não cumulatividade plena. 

No caso dos fornecedores estrangeiros, a LC 214/2025 atribui ao marketplace a responsabilidade pelo recolhimento do IBS e da CBS quando o vendedor está domiciliado fora do país e não possui inscrição fiscal. Todavia, a lei não esclarece como se dará a cobrança quando nem o fornecedor nem a própria plataforma estrangeira estiverem estabelecidos no Brasil, ou quando o pagamento for processado por instituição cambial. Essa situação ainda não regulamentada deixa em aberto a efetividade da regra e o alcance da solidariedade, especialmente em plataformas internacionais que operam sem presença jurídica local.

Situação igualmente delicada ocorre nas operações internas, sobretudo nas vendas ocasionais de bens usados entre pessoas físicas. Quando a plataforma intermedeia o pagamento, retendo comissão, pode-se cogitar sua responsabilidade solidária; porém, se atua apenas como espaço de anúncio, sem intermediar valores, não há fato gerador de IBS ou CBS, conforme o art. 26, IV, da LC 214/2025, que exclui da incidência operações realizadas por nanoempreendedores e não contribuintes.

O tema se complica sob a ótica da não cumulatividade. O art. 51 da LC 214/2025 anula créditos decorrentes de isenções e imunidades, mas não regula a não incidência, como nas vendas ocasionais. Já o art. 47, §2º, restringe a apropriação de créditos às hipóteses com débito destacado no documento fiscal. Assim, operações não incididas impedem o aproveitamento de créditos, comprometendo a aplicação da não cumulatividade plena.

A tributação pelo destino traz desafios relevantes, pois o IBS e a CBS pertencerão ao ente do local de consumo, envolvendo créditos e débitos em diferentes jurisdições. Sem um mecanismo eficaz de compensação entre origem e destino, há risco de dissociação entre o direito ao crédito e a obrigação de pagar, o que compromete a não cumulatividade e pode gerar cumulatividade indireta. A implementação desse modelo exigirá coordenação efetiva entre o Comitê Gestor e os entes federativos para preservar a neutralidade econômica.

O descompasso normativo evidencia incoerência sistêmica: o legislador reconheceu a não incidência, mas não previu a neutralização dos créditos correspondentes. Sem regulamentação adequada, essas operações poderão acumular créditos e distorcer a neutralidade tributária, especialmente nos marketplaces que intermedeiam transações simultaneamente tributadas e não tributadas.

Essas indefinições reforçam a necessidade de regulamentação específica pelo Comitê Gestor, sob pena de perpetuar insegurança jurídica e comprometer a coerência de um modelo de tributação sobre bens e serviços na economia digital que tem como pilares fundamentais, como é cediço por todos, a simplicidade, a transparência, a não cumulatividade e a neutralidade.

Por fim, o modelo atual de corresponsabilização concentra funções típicas do Estado nas mãos de empresas privadas. Isso amplia o controle fiscal, mas também desloca o risco jurídico para o setor produtivo. Assim, a eficácia do novo sistema dependerá, de um equilíbrio entre a busca por eficiência arrecadatória e a preservação da proporcionalidade regulatória. O desafio é assegurar que o marketplace não se transforme em um substituto tributário universal, mas em um colaborador legítimo de um sistema tributário mais transparente e funcional.


Rômulo Coutinho, sócio do Lavez Coutinho, atuação em tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Professor nos cursos de pós-graduação do Ibmec, da FIPECAFI e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

Nicole Côrte Real, advogada do Lavez Coutinho, atuação em Tributário. Mestrado em Direito Tributário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em curso. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ).


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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