
Por Samira Rodrigues
A Reforma Tributária já está entre nós. Passou o tempo em que se acreditava que “nunca aconteceria” e a realidade veio com a publicação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e, posteriormente, da Lei Complementar nº 214/2025, trazendo à tona uma mudança estrutural significativa no sistema tributário brasileiro, por meio da instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Dentre todas as mudanças em curso, um dos pilares mais aguardados da nova sistemática é a prometida plenitude da não cumulatividade, especialmente com o fim dos regimes monofásicos e da substituição tributária em larga escala. A não cumulatividade visa garantir que o tributo incida apenas sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia, permitindo o crédito amplo das etapas anteriores. O modelo proposto para o IBS e a CBS busca replicar boas práticas internacionais, alinhando-se a modelos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) adotados em diversos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Contudo, o texto constitucional preserva exceções significativas, como a manutenção da Zona Franca de Manaus e a possibilidade de criação de regimes favorecidos por lei complementar. Essas exceções podem gerar distorções práticas à regra da não cumulatividade plena.
A existência de créditos presumidos, alíquotas reduzidas ou isenções para determinados segmentos provoca desbalanceamentos econômicos entre setores concorrentes, especialmente quando olhamos para os elos iniciais da cadeia produtiva, já que há setores beneficiados e não beneficiados que disputam a mesma matéria-prima. Isso ocorre, por exemplo, em itens da cesta básica no setor de alimentos, bem como nos setores de higiene, farmacêutico e químico.
Exemplos dessas matérias-primas são proteínas, insumos químicos e embalagens. Quando um setor incentivado obtém desoneração total ou parcial na aquisição desses insumos, consegue competir com mais agressividade no mercado. O fornecedor tende a ter um custo efetivo menor ao vender, por exemplo, ao setor agropecuário, em vez de ao setor de alimentos para animais domésticos. Especialmente no caso de matérias-primas industrializadas (como farinhas e farelos), o fornecedor pode ter destaque tributário na saída sem ter crédito correspondente na entrada.
Outro exemplo é o de insumos como álcool etílico, glicerina e essências, utilizados tanto em sabonetes e desinfetantes quanto em medicamentos. Os medicamentos mantêm benefícios na nova sistemática, como alíquota reduzida ou isenção, enquanto o setor de higiene pessoal não está plenamente incluído nos regimes favorecidos. O impacto é que o insumo chega mais barato ao setor farmacêutico e mais caro ao de higiene. Mesmo que este último conte com alguns benefícios na cesta básica, muitas vezes não consegue compensar os créditos com facilidade, resultando em acúmulo ou aumento de custo efetivo.
Tais cenários vão de encontro com a lógica do IVA, que pressupõe neutralidade competitiva. Um ambiente de Reforma que mantém a possibilidade de tratamentos favorecidos pode distorcer a concorrência quando um setor incentivado obtém insumos com isenção ou alíquota reduzida e o setor concorrente, que usa os mesmos insumos, paga a alíquota cheia, enfrentando ainda restrições práticas ao aproveitamento de créditos, devido à falta de clareza legislativa.
A regulamentação infraconstitucional e os órgãos administradores desses tributos devem se atentar para prever mecanismos que:
- Evitem o acúmulo estrutural de créditos, permitindo ressarcimento ágil e desburocratizado;
- Estabeleçam critérios de transparência e controle sobre os regimes favorecidos, minimizando efeitos concorrenciais indesejáveis; e
- Impeçam que incentivos a setores específicos contaminem negativamente cadeias conexas, afetando a neutralidade do modelo de IVA.
Será essencial o monitoramento setorial ativo, por parte das empresas e das entidades de classe, para detectar e relatar desequilíbrios na formação de preços relativos causados por incentivos cruzados.
É importante estarmos conscientes de que a concessão de benefícios e exceções específicas setoriais, além de aumentar a carga tributária final para todos, também, gera distorções de mercado e compromete a competitividade de setores não favorecidos.
A Reforma Tributária representa uma oportunidade histórica de modernização do sistema tributário brasileiro, alcançando, de fato, uma neutralidade e isonomia competitiva, assim, a regulamentação futura deverá mitigar as assimetrias, sob pena de agravar desigualdades já existentes.
Samira Rodrigues é Coordenadora Tributária na Adimax, com 8 anos de experiência na área tributária. Acredita que tributo é instrumento de competitividade e impacto nos negócios. Mãe — de baby e de pet —, advogada e apaixonada por simplificar o complexo com criatividade e técnica.
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