Questão de princípios (IV): Cooperação e conformidade cooperativa

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Por Heron Charneski

Princípio da Cooperação e Conformidade Cooperativa: Tênis e Frescobol

Rubem Alves, na crônica “Tênis x Frescobol”, contrapôs as duas modalidades recreativas para ilustrar diferentes formas de relacionamento humano. No tênis, o objetivo é eliminar o adversário: “o prazer do tênis se encontra (…) no momento em que o jogo não pode mais continuar, porque o adversário foi colocado fora do jogo”. No frescobol, o propósito é diferente. Trata-se de um jogo colaborativo, onde a bola não deve parar, e não há vencedores nem vencidos: “Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado”. 

A metáfora é poderosa para o sistema tributário. Fiscalizações, penalidades elevadas e confrontos contumazes podem caracterizar um jogo de tênis, enquanto que cooperação contínua, autorregulação e diálogo estruturado melhor remetem à imagem do jogo de frescobol. 

É exatamente nesse horizonte que se insere o princípio da cooperação e o correspondente conceito de “conformidade cooperativa”, um modelo que vem ganhando espaço no mundo e também no Brasil.

A Emenda Constitucional nº 132, de 20/12/2023, ao veicular a Reforma Tributária do Consumo (RTC), estabeleceu que o o Sistema Tributário Nacional deve observar o  “princípio da cooperação” (§ 3º do art. 145 da Constituição Federal). 

A cooperação encontra fundamento em outros princípios constitucionais, como a igualdade, a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana. Ainda assim, o dispositivo constitucional expresso confere força programática e interpretativa à aplicação do princípio. A autoridade fiscal, diante de alternativas válidas, opta por aquela mais saudável à continuidade da própria relação jurídico-tributária. E o contribuinte coopera para atuar em um melhor e mais previsível ambiente de negócios.

A cooperação surge como iniciativa conjunta entre Estado e contribuintes para melhorar o cenário conflituoso hoje existente e que, na verdade, não favorece a nenhum dos lados.

Como é de conhecimento corrente, o sistema brasileiro é marcado pelo alto grau de complexidade e, por consequência, de litigiosidade na interpretação e aplicação da legislação tributária. 

A complexidade tributária, de acordo com a recente pesquisa  Guia de Gestão Tributária 2025 – A Visão do Contribuinte, divulgada pelo Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET), surge hoje como o principal desafio tributário das empresas no Brasil, à frente de itens como as frequentes mudanças na lei, a carência de profissionais especializadas e a própria carga tributária elevada. Conforme o estudo, esse cenário tem levado as empresas a aumentarem, em média, 15% de seus orçamentos destinados à gestão tributária a cada ano. 

Além do custo de aplicar e interpretar a legislação, a complexidade leva a um alto grau de litigiosidade entre Fisco e contribuintes e a um alto estoque de débitos tributários de nível federal, estadual e municipal no Brasil.

O último relatório do Observatório do Contencioso Tributário do Insper estima que os conflitos tributários, tanto na esfera judicial como administrativa, somavam R$ 5,69 trilhões em 2020, ou 74,8% do PIB. 


Às vésperas do início da transição da reforma tributária, cabe perguntar: como esse estoque será resolvido?

Um outro aspecto do cenário conflituoso brasileiro é o chamado “grau de aderência”, que mede a manutenção dos créditos tributários constituídos pela fiscalização. 

De acordo com dados do Relatório Anual da Fiscalização da Receita Federal 2024/2025, entre 2019 e 2024, o montante de autuações feitas que foram pagas ou parceladas, quer dizer, reconhecidas espontaneamente pelo contribuinte, situa-se entre 1,5% a 3% dos valores totais lançados. A parte restante é enviada para cobrança judicial, julgada improcedente ou, em sua maioria, segue em discussão. 

Existem avanços na cobrança, mas a quantidade de autuações a serem julgadas é expressiva e segue crescendo. Nos anos de 2022, 2023 e 2024 ficaram pendentes de julgamento, respectivamente, 73,3%, 82,5% e 59,5% dos valores dos lançamentos constituídos, conforme o citado Relatório.

Entende-se, assim, que os lançamentos tributários não têm a efetividade desejada pelo próprio Fisco em termos arrecadatórios, consumindo anos para serem julgados, tanto pela via administrativa como pela judicial.

Nesse cenário de insegurança jurídica, é intuitivo, pois, que a ideia de cooperação, em linha com as melhores práticas internacionais, possa soar como um alívio para os contribuintes e para o Fisco.

Recorrendo ao campo da  biologia,  percebe-se que a cooperação e a competição são processos fundamentais para a dinâmica e para a evolução das espécies, moldando comportamentos e adaptações. 

Destaque-se a cooperação entre abelhas e flores. Enquanto as abelhas obtém nectar, polinizam e beneficiam as plantas.  Já a competição (por alimento ou água entre dois organismos, por exemplo) resulta, necessariamente, em prejuizo para um dos envolvidos.

A conclusão  nos remete ao ambiente tributário. Cooperação e competição não são processos ‘bons’ ou ‘ruins’, por si . O problema ocorre quando a competição se sobrepõe à cooperação.

Os parcelamentos extraordinários (Refis, Paes, Paex), por exemplo, adotam uma postura competitiva. Ofertam facilidades amplas para aumentar a arrecadação e fechar as contas dos governos, mas geram possíveis distorções e injustiças, como o “risco moral” (moral hazard), no qual devedores se acomodam aguardando anistias, e a “seleção adversa”, quando jurisdicionados de maior capacidade contributiva são incentivados a pagar menos.

Esses parcelamentos tendem a incentivar uma lógica de continuidade da competição litigiosa entre o Estado e o contribuinte.

Noutro giro, o acordo de transação, que começou a ser disseminado em nível federal a partir de 2020 e, mais recentemente, também nos Estados, segue a lógica da colaboração. Trata-se de um modelo administrativo que exige análises individualizadas e concessões mútuas entre Estado e contribuinte, voltado especialmente à resolução de litígios e dúvidas jurídicas. 

O contribuinte pode recusar o acordo de transação e levar a discussão para o nível de uma controvérsia legítima, tornando a competição mais seletiva e refinada. Todavia, nos seus objetivos, a transação é estruturada para evitar a seleção adversa e o risco moral, requerendo abertura de sigilo bancário, comprovação da capacidade contributiva, auditorias pós-adesão e compromisso de conformidade futuro.

Assim colocada, a transação pode ser um fator de equilíbrio no meio ambiente tributário.

Vale lembrar que o princípio da cooperação conduz ainda ao conceito de “conformidade cooperativa” (ou cooperative compliance, na expressão estrangeira), uma abordagem em que contribuinte e o Fisco estabelecem uma relação de longo prazo, baseada em transparência e prevenção, ao invés de captura punitiva. 

Em vez de se focar em penalizar erros, busca-se preveni-los por meio do compartilhamento proativo de informações, da resolução de incertezas fiscais de forma conjunta e do desenvolvimento de sistemas de governança compartilhada.

Nesse modelo, ambos os lados saem ganhando. O Estado reduz custos de fiscalização e o contribuinte obtém segurança jurídica e menor exposição a passivos inesperados. Em vez de torneios esporádicos (jogos de tênis), temos rodas contínuas e permanentes de frescobol, construindo confiança mútua.

Na perspectiva da gestão tributária, a conformidade, ou compliance (numa compreensão mais simples, o cumprimento das leis e das regulamentações), deixa de ser um mero custo obrigatório, para ser uma vantagem estratégica que pode melhorar rentabilidade, segurança jurídica e sustentabilidade das empresas.

Do ponto de vista da administração pública, observa-se, igualmente, uma mudança positiva. A visão ancorada no chamado “paradigma do crime” (a busca da conformidade pela imposição do medo de detecção e punição) dá espaço ao chamado “paradigma do cliente”, segundo o qual o contribuinte deve receber tratamento adequado, serviços públicos de qualidade, no sentido de orientar e buscar o cumprimento voluntário da lei. 

No lugar de apenas focar na punição, a conformidade cooperativa irá buscar a prevenção de litígos e a transparência. Abranda-se a lógica da “sanção penal”, como consequencia do descumprimento da norma jurídica, para assumir a lógica da “sanção premial,” recompensando quem cumpre as regras vigentes. 

Os exemplos de programas de conformidade cooperativa já vigentes são diversos. 

No âmbito estadual, o Estado de São Paulo foi pioneiro com o programa “Nos Conformes” (Lei Complementar nº 1.320/2018), no qual os contribuintes são classificados em sete categorias, conforme os critérios de adimplência e aderência na documentação, e podem usufruir de benefícios como procedimentos simplificados de transferência de créditos acumulados, renovação de regimes especiais, entre outros. 

Podem ser citados outros programas estaduais semelhantes como “Contribuinte Arretado” (Lei nº 8.085/2018, em Alagoas), “Pai DÉgua” (Lei nº 17.087/2019, no Ceará), “Contribuinte Exemplar” (Lei nº 10.497/2019, no Rio Grande do Norte) e “Nos Conformes” (Lei nº 15.576/2000, no Rio Grande do Sul).

Na esfera federal, embora com requisitos exigentes, pode ser considerado um exemplo inicial de legislação apoiada na visão de sanção premial o “Bônus de Adimplência Fiscal” instituído pela Lei nº 10.637/2002, ainda vigente, que prevê um crédito de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para contribuintes adimplentes.

Mais recentemente, a Receita Federal do Brasil deu início à  estruturação de programas de conformidade e cooperação, alguns ainda em fase de testes e pilotos.

No âmbito da tributação corporativa, podem ser citados: a) o monitoramento de grandes contribuintes, inicialmente focado na programação de fiscalizações em indícios de práticas de ilícitos, e que passou a ser norteado pelo objetivo de autorregularização, com a oportunidade de o contribuinte recolher espontaneamente tributos sem multas e penalidades, em caso de dúvidas (Portaria RFB nº 641/2015); b) o Programa Operador Econômico Autorizado – OEA, um programa de conformidade em temas aduaneiros (IN RFB nº 1.598/2015); c) o Programa Sintonia, que classifica os contribuintes conforme a pontualidade de obrigações principais e acessórias (Portaria RFB nº 511/2025); d) o Receita de Consenso, programa de solução preventiva de conflitos tributários, para contribuintes ranqueados, buscando consensos sobre a aplicação da legislação tributária, no prazo de 90 (noventa) dias (Portaria RFB nº 467/2024); e) o Receita Soluciona, que busca promover e facilitar o diálogo entre a RFB e a sociedade sobre matérias tributárias e aduaneiras (Portaria RFB nº 466/2024); e f) a gestão de riscos em temas específicos, como decorre do Plano Anual de Fiscalização 2024/2025, permitindo ao contribuinte conhecer antecipadamente a interpretação da Receita Federal sobre temas prioritários de fiscalização, podendo prevenir-se com medidas de autorregularização.

Sublinhe-se, ainda, o programa Confia, cujo piloto teve início em 2024, com a adesão de 20 empresas (Portaria RFB nº 387/2023). Trata-se do programa mais avançado de conformidade tributária no país. Alinhado às orientações da OCDE e às práticas internacionais, o Confia é destinado às empresas que possuem estrutura de governança corporativa tributária eficaz e sistema de gestão de conformidade tributária.

Além dos benefícios legais, esses programas de conformidade tributária podem trazer para a gestão tributária melhoria nas operações, aumento da eficiência, prevenção de riscos, menor exposição a passivos, maior agilidade na resposta às fiscalizações, maior transparência com os stakeholders, ou seja, benefícios que se traduzem em muitas vantagens para o negócio. 

Vale destacar que os benefícios dos programas Sintonia, OEA e Confia poderão ser ampliados com a concessão de benefícios tributários, caso venha a ser aprovado o Projeto de Lei nº 15, de 2024, em tramitação no Congresso Nacional.

Tampouco se deve descurar que, na Reforma Tributária do Consumo (RTC), a Lei Complementar nº 214, de 16/01/2025, determina que o contribuinte do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) que apurar saldo credor ao final do período de apuração poderá ter ressarcimento desse saldo de forma mais célere, em até trinta dias, se elegível no âmbito de programas de conformidade.

O princípio da cooperação incorporado à Reforma Tributária não se resume à sua nobre intenção. A Constituição passa a oferecer uma norma jurídica expressa que se destina tanto aos legisladores, na formulação de leis de transação, mediação e arbitragem, quanto às autoridades fiscais, na elaboração e gestão de programas de conformidade. Como resultante, os contribuintes também podem ter benefícios desses programas.

Robert Axelrod, em sua seminal obra The Evolution of Cooperation, demonstra que a cooperação pode surgir mesmo em ambientes naturalmente competitivos, desde que exista uma base de reciprocidade e uma simetria entre as posições envolvidas. De outro modo, a cooperação tende a fracassar quando os atores estão em condições de poder muito desiguais. Por isso, segundo defende o autor, o fundamento da cooperação não deve ser necessariamente a confiança, mas a durabilidade do relacionamento.

Como no frescobol, para o jogo prosseguir, é preciso evitar que uma parte anule e vença a outra. Para isso, o princípio da cooperação não deve ser entendido como um instrumento adicional de arrecadação. Ele deve potencializar a observância aos direitos e garantias constitucionais do sistema tributário.

Com a Reforma Tributária do Consumo e outras alterações à frente, a escolha entre o jogo de tênis ou de frescobol não é estilística, e sim estratégica. A prioridade a sistemas cooperativos e transparentes alinha os incentivos para o cumprimento espontâneo e eficaz das normas. Trata-se de esforço mútuo, que almeja beneficiar a sociedade.


 Heron Charneski. Doutor e Mestre em Direito Tributário (USP), Mestre em Direito Comercial Internacional (University of California, Davis). Advogado e Contador. Presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET).Sócio-Fundador do Charneski Advogados.


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