
Por Eduardo Silveira Frade e Thaciano Rodrigues de Azevedo
A reforma tributária brasileira tem sido apresentada como o maior esforço de simplificação do sistema desde a Constituição de 1988. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a edição da Lei Complementar nº 214/2025, a promessa de reunir ICMS e ISS em um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e PIS/Cofins em uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), finalmente saiu do papel. Nesse cenário, um tema ganha destaque: o tratamento do cooperativismo. Não se trata de buscar benefícios ou privilégios, mas de reconhecer a natureza singular das cooperativas, que não têm como finalidade o lucro, mas sim o atendimento dos interesses de seus associados.
A Constituição de 1988 determinou que a lei complementar deveria assegurar às cooperativas um “adequado tratamento tributário”, mas nunca deixou claro o que deveria ser entendido por isso. Durante décadas, a questão permaneceu em aberto, gerando insegurança jurídica e interpretações divergentes. O que é, afinal, o “ato cooperativo” que merece tratamento diferenciado?
A Lei nº 5.764/1971, a chamada Lei Geral do Cooperativismo, definiu o ato cooperativo como aquele praticado entre cooperativa e associados, ou entre cooperativas, para a consecução dos objetivos sociais. A leitura estrita desse dispositivo excluiria da proteção atos com terceiros. Contudo, sem se relacionar com o mercado, nenhuma cooperativa consegue cumprir sua função social, mesmo porque uma sociedade cooperativa compreende um empreendimento econômico de propriedade compartilhada entre os associados, também ditos cooperados, que compartilham proporcionalmente dos lucros obtidos a partir da atuação no mercado. O objetivo de uma sociedade cooperativa, com efeito, não é aferir lucros, mas possibilitar que os associados possam competir com os grandes agentes de mercado em igualdade. Daí a necessidade de uma interpretação mais ampla, que reconheça como atos cooperativos também os chamados negócios-meio, ou seja, operações com não associados indispensáveis para viabilizar os negócios-fim.
A Emenda Constitucional nº 132/2023 deu um passo importante nesse debate ao reafirmar a exigência de tratamento tributário diferenciado para cooperativas e, sobretudo, ao prever a possibilidade de um regime específico optativo.
Entre os dispositivos mais relevantes, merece destaque o artigo 156-A, §6º, III, acrescido à Constituição Federal de 1988 pela supracitada emenda constitucional. Neste dispositivo se destacou a possibilidade de se optar, por um regime diferenciado, no qual não haveria a não incidência do imposto nas operações entre cooperativas e associados, bem como entre cooperativas entre si, quando associadas, desde que para a consecução de seus objetivos sociais.
A novidade, foi constitucionalizar a ideia de que essas operações não devem ser tributadas, reforçando a competitividade e a neutralidade concorrencial. Ademais, ao trazer a possibilidade de opção por regime diferenciado, deixou-se para o interessado a necessidade de realização de planejamentos tributários, levando em consideração que a inexistência de operação tributada não resultaria em créditos a serem tomados pelo adquirente
A Emenda Constitucional 132/2023, contudo, deixou em aberto questões decisivas, como o aproveitamento de créditos na relação com terceiros, ponto que pode determinar se a cooperativa será ou não uma parceira atrativa no mercado.
A Lei Complementar nº 214/2025 trouxe as primeiras respostas. Ao regulamentar o IBS e a CBS, estabeleceu hipóteses expressas de não incidência, incluindo a destinação de recursos ao Fundo de Reserva e ao Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES), bem como a distribuição de sobras aos associados. Trata-se de um avanço, pois reconhece que esses fluxos não representam lucro a ser tributado, mas sim a própria essência do modelo cooperativo.
Ainda assim, o regime desenhado não está livre de pontos de atenção. O primeiro é o alcance limitado aos fundos obrigatórios previstos na Lei 5.764/1971. Outros fundos criados por estatutos sociais ficaram de fora, o que pode gerar assimetrias e até estimular planejamentos agressivos para enquadrar destinações nos fundos isentos. O segundo problema está na ausência de clareza sobre como se dará a opção pelo regime específico: a lei não detalhou se haverá prazo mínimo de permanência, se a manifestação será feita em escriturações contábeis ou em declarações próprias, e quais os efeitos de uma eventual mudança de regime.
Por fim, a operacionalização do crédito com terceiros ainda precisa ser afinada. Mesmo que a cooperativa opte em não adotar o regime diferenciado, se o adquirente encontrar obstáculos para usar créditos de operações com cooperativas, a relação perde atratividade e o efeito será contrário ao pretendido pela Constituição, que é estimular o cooperativismo, compromisso assumido no artigo 174, §2º da Constituição Federal de 1988;
É preciso também destacar que diferentes ramos do cooperativismo terão desafios específicos. As cooperativas de crédito, por exemplo, devem conciliar a tributação com regras prudenciais do Banco Central; as de saúde, trabalho e transporte lidam com contratos complexos e precisam de guias práticos de compliance fiscal. O mesmo vale para o setor agro. Sem regulamentações complementares, cada setor corre o risco de enfrentar interpretações divergentes em fiscalizações, mesmo porque a compreensão do ato cooperativo deve levar em consideração a atividade econômica desempenhada por cada cooperativa, levando em consideração o mercado em que se insere e os objetivos perseguidos por cada estatuto social.
Apesar desses desafios, o balanço é positivo. A reforma finalmente incorporou o cooperativismo ao debate central da tributação sobre consumo e deu respostas práticas que aproximam a realidade brasileira de modelos internacionais mais maduros.
Ao reconhecer a não incidência em operações entre cooperados e cooperativas, preservar a natureza não lucrativa das sobras e permitir um regime optativo com crédito garantido para terceiros, o legislador avançou na direção correta, ainda que pudesse, ao nosso sentir, possibilitar um creditamento fictício para aquelas cooperativas que optem pelo regime diferenciado, por mais que não haja a incidência tributária em algumas operações.
O que falta agora é consolidar a segurança jurídica com regras claras de opção, ampliação do tratamento para outros fundos e detalhamento da transferência de créditos.
Em última análise, o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo deixou de ser uma promessa distante da Constituição de 1988 para se tornar uma realidade em construção. A EC 132/2023 e a LC 214/2025 abriram o caminho. Cabe aos reguladores, às cooperativas e ao próprio mercado transformarem esse arcabouço em prática cotidiana, com definições claras das atividades das cooperativas por setor, com vistas a fortalecer a competitividade e dar concretude ao mandamento constitucional de estímulo ao cooperativismo.
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Eduardo Silveira Frade é Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Especialista em Gestão de Cooperativas de Crédito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da graduação em Direito na Universidade Estadual da Paraíba. Professor das pós-graduações do IBET, ESA/PB, UNIESP e The Solution. Conselheiro de Recursos Fiscais na SEFAZ/PB. Advogado Tributarista.
Thaciano Rodrigues de Azevedo é Advogado tributarista; Procurador do Município de João Pessoa; Doutorando em Direito (UNICAP-PE); Mestrando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento (IDP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB Seccional Paraíba.
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