
Por Gabriel Benevides e Douglas Rodrigues, de Brasília
O presidente do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), Carlos Higino, concedeu uma entrevista exclusiva ao Portal da Reforma Tributária em 16 de setembro. Ele falou sobre como o contencioso será tratado a partir da criação da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Também compartilhou quais são as metas do colegiado para os próximos anos.
Leia abaixo a íntegra da entrevista. As perguntas realizadas pelos jornalistas Gabriel Benevides e Douglas Rodrigues estão sinalizadas em negrito. As respostas de Higino, em itálico.
Há uma análise de que a reforma tributária foi feita com pouca atenção ao tema do contencioso. Essas discussões foram retomadas com mais intensidade agora, especialmente no PLP 108 de 2024. Qual vai ser o papel do Carf em relação à transação tributária? O senhor defende algum ajuste no projeto de lei complementar?
[Em tom de brincadeira] Começar a entrevista discordando do jornalista é sempre complexo, né? Mas não acho que tenha sido minimizado o problema do contencioso.
É um problema extremamente complexo essa questão da gestão do crédito tributário. Essa concepção do Comitê Gestor é uma concepção de direito administrativo muito inovadora, porque é uma das primeiras –não sei talvez se a 1ª– mas uma das poucas experiências que temos de arranjos interfederativos. Há algumas outras experiências, tem uns consórcios de municípios que se juntam para fazer fornecimento de água e tal.
Mas é um arranjo muito inovador, o Comitê Gestor, ter uma autarquia, uma pessoa jurídica de direito público com várias competências com relação a todos os estados, o Distrito Federal e todos os municípios do país. Veja, esse é um arranjo muito inovador pelo desenho institucional.
Não acho que foi dada menor importância a ele. Mas é um arranjo muito complexo. Uma das funções do Comitê Gestor é cuidar da questão do contencioso. Mas veja a complexidade tem aí: ele não vai cuidar de todo o contencioso de estados e municípios, vai cuidar do contencioso do IBS. Por quê? Os estados ainda terão um contencioso próprio de IPVA e ITCD –que é pequeno, muito pequeno. Mas os municípios continuarão com o contencioso de IPTU, que é gigante.
Em termos de quantidade de processos, os municípios têm um contencioso gigante. É um arranjo muito complexo que foi estruturado. Esse arranjo complexo, inclusive pensando só em estados, sem chegar na União, tinha vários modelos. Tinha o modelo de continuar a 1ª instância nos estados e municípios, depois subir. Até decidir que todo o contencioso do IBS vai para o Comitê Gestor –o que, para mim, foi acertado.
O Comitê Gestor não é um Carf, é muito mais do que um Carf. Vai ter várias funções: arrecadar, distribuir o dinheiro, os valores cadastrados do IBS. Será extremamente poderoso e terá várias funções. Uma das funções é o contencioso. Acho que o contencioso, por ficar todo dentro do Comitê Gestor, facilita bastante. Acho que foi acertado.
Então, só fazendo uma ressalva, o problema era muito complicado de como é que ia ter uma decisão envolvendo várias unidades da federação falando só de IBS, na questão da reforma.
No tocante ao IBS e à CBS, julgamos, na 3ª Seção do Carf, PIS/Cofins e IPI. Continuaram sendo julgados por lá. Não teremos que fazer tanta adaptação, porque vai ser o mesmo modelo que já vigora hoje. O Carf, em si, não precisava fazer uma grande transformação para receber o contencioso em termos de processo.
Não acho que o contencioso tenha sido deixado para um 2º momento. É uma reforma que havia 40 anos que se tentava fazer. Em 3 anos, praticamente, se aprovou uma emenda constitucional, leis complementares, e ainda tem mais uma lei complementar e uma ordinária. É um ganho gigantesco. Acho que estamos muito vitoriosos com a reforma pelo tamanho do desafio. Falta só esse complemento aí [PLP 108], mas vai sair, se Deus quiser.
O último parecer do PLP 108 criou a Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo do IBS. Como o senhor avalia esse novo colegiado?
Os 2 sistemas são muito parecidos: uma 1ª instância com julgamento unocrático, 2ª instância colegiada, paritária. Câmara Superior [do Carf] e Câmara de Uniformização [do comitê]. Isso é muito parecido. A parte de julgamento do Comitê de Gestão mimetiza muito o Carf. E, na verdade, mimetiza o que já havia na maioria dos estados em termos de julgamento.
Agora, o grande ponto que faltava era esse. Houve uma discussão nesse sentido. É um avanço para que não se tenha duas decisões em conflito e que precisem ser decididas no Judiciário.
Tem que esperar um pouco para ver qual vai ser a redação final. Mas, de uma certa maneira, é uma tentativa de evitar que isso vá para o Judiciário. E, nesse ponto de vista, é positivo.
Como seria a operacionalização da câmara na prática?
Temos que ver. Aliás, vocês estão bem atualizados, porque saiu semana passada esse relatório do senador Eduardo Braga.
Provavelmente, a ideia aqui é ter essa Câmara meio que paritária: 4 conselheiros da Fazenda, da Câmara Superior do Carf; 4 membros da Câmara Superior do Conselho Gestor do IBS; e 4 representantes contribuintes, 2 do Carf e 2 do comitê.
A ideia é fazer algo paritário entre contribuintes e representantes das fazendas –federal, estadual e municipal– e com a composição das confederações. E entre estados, municípios e setor privado. Acho que a ideia é trabalhar um modelo já existente e utilizá-lo para isso.
Qual é a questão aqui? Foi criado o Chat [Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias] e o Fórum de Harmonização das Administrações Tributárias. Nesse comitê de harmonização, a função não era uniformizar julgamentos. Era uniformizar a interpretação. Temos uma coordenação na Receita que é tradicional, que é a Cosit, que interpreta para o Fisco.
Qual é a lógica do comitê de harmonização? Ter uma espécie de coordenação de tributação comum do IBS e da CBS que vai interpretar para o governo federal, estados e municípios. A interpretação, não pelo caso concreto, porque tudo é interpretação.
Quando se julga, se interpreta. Mas a interpretação que não é contenciosa –ou seja, não corresponde a uma insatisfação do contribuinte com relação ao lançamento, decorrendo de uma consulta de um caso concreto– é feita internamente na Receita. E era feita pelas secretarias de Fazenda no âmbito das subsecretarias de Tributação.
O comitê de harmonização vai fazer isso, tanto que é composto por auditores. Acontece que entre o projeto que foi mandado para a Câmara e o que saiu para o Senado, com esse problema da uniformização dos julgamentos do contencioso entre CBS e IBS, se colocou lá nesse parecer que o Chat ia fazer interpretação de julgado. Aí isso deu um problema, porque as representações dos setores produtivos e das confederações disseram: “Olha, mas ao fim e ao cabo, vai ter uma uniformização de julgados que não tem paridade”. E aí deu um problema.
Aparentemente, a gente vai ter que ver ainda a votação e a conclusão, mas o relator, o senador Eduardo, tenta corrigir isso e voltar ao modelo que já existia: uma área interpretativa não contenciosa, que fica dentro da própria Receita e da secretaria de Fazenda e uma outra área que precisa uniformizar o contencioso –ou seja, quando tiver a interpretação do caso concreto sendo julgados, e aí você julgamentos diferentes.
Acho que a última redação do senador Eduardo, inserindo inclusive o setor privado nessa câmara nacional, visa responder a isso. E era, digamos, uma das pontas soltas que eu acho que estão sendo corrigidas positivamente nesse relatório do senador.
Há quem defenda, mesmo alguns conselheiros do Carf, justamente o contrário: ao invés de o Comitê Gestor e mimetizar o Carf, levar isso para dentro do próprio conselho. A proposta é criar uma 4ª Seção com representantes dos estados e municípios. Qual o posicionamento do senhor sobre o tema?
Temos que ter uma certa consciência do pacto federativo. Já foi uma construção muito complexa conseguir juntar todos os estados e municípios. Mas é uma tradição muito grande que o estado e município sempre tenham receio de perda de competências para fora de si.
De uma certa maneira, quando fez a reforma, fez uma coisa que é inimaginável em termos de ter uma legislação única, federal –que na verdade é nacional, porque vai ter uma legislação única de CBS e IBS– e só na regulamentação é que a parte comum ainda vai ser conjunta e cada um depois vai fazer sua parte específica.
O ganho que tivemos de informação é gigante. Mas sempre temos que ter um respeito muito grande pelo pacto federativo. Acho que os estados e municípios querem manter a competência que lhes é devida e que já foi muito uniformizada com a legislação nacional sobre o tema. Acho de muito difícil aplicação essa ideia, principalmente pela questão dos estados e dos municípios aceitarem uma situação como essa. Acho que os estados e os municípios sempre têm uma certa cautela de serem engolidos pela União. E é natural isso.
Não temos um federalismo, talvez, tão avançado quanto o norte-americano, em que a competência do estado é bem mais ampla do que aqui, em termos de matérias. Mas temos sempre que respeitar um pouco isso. Acho muito difícil, não havia viabilidade política para a gente não ter um julgamento de uniformização lá pelo Comitê Gestor.
E aí, sim, se houver uma divergência entre o Carf e a Câmara de Julgamento lá do Comitê Gestor, faz-se a uniformização com a participação de todos.
A reforma, no mérito, materialmente, vai facilitar muito o processo administrativo fiscal no que toca à CBS, com a extinção de PIS/Cofins e IPI. Por quê? É uma questão importantíssima. O maior número de processos no Carf hoje, em termos de quantidade, é PIS/Cofins. E o debate central de PIS/Cofins é: o que se aproveita ou não como crédito. Essa é uma questão fundamental. Tirando o consumo de natureza pessoal, todo o resto vai ter aproveitamento de crédito.
Vai matar, no mérito, o maior debate que tem aqui. Por que digo isso? Tem sempre o debate do que poderia ser crédito. Aí teve uma decisão do STJ que disse: “Não, agora eu vou resolver. Tudo que foi essencial e relevante é aproveitado”. Aí devolvo: o que é que é essencial e relevante? Não se resolveu nada, na verdade.
Então a gente ficava discutindo aqui no Carf tudo que era essencial e relevante para aproveitar de crédito. Aí tinha: capatazia do exportador não é essencial, despachante não é essencial… Era uma discussão infinda do que é essencial e do que não é para fins de aproveitamento de crédito.
O grande ganho da reforma, em termos de processo, é acabar com esse debate do que é essencial e relevante para aproveitamento de crédito. Isso vai ter um efeito contencioso dos 2 tributos, IBS e CBS, inimaginável. Basicamente você vai discutir consumo pessoal, o que está excluído. Para grandes empresas isso é irrelevante. Às vezes, tem alguma mistura em empresas menores, mas isso é irrelevante.
A reforma, no médio e longo prazo, vai ter um caráter simplificador da questão dos impostos sobre o consumo gigantesco. E as pessoas não estão considerando. Ela é, no mérito, simplificadora ao extremo.
Essa simplificação em relação aos créditos tem potencial de diminuir o tempo de julgamento do contencioso no Carf?
Com certeza. Esse contencioso deixa de existir, porque não vai mais estar discutindo o que é essencial e relevante.
É claro que vai demorar um tempo. Nós ainda vamos ter 5 anos para lançar PIS/Cofins e aí tem que julgar todo o contencioso. Pode pôr 5 ou 10 anos e ainda vai ter contencioso de PIS/Cofins.
Porém, no novo contencioso da CBS que vai ficar no Carf, desaparece o principal elemento. Isso vai reduzir muito. Porque hoje a quantidade principal de processos no Carf –até pensei até que fosse de contribuição previdenciária, mas não– é PIS/Cofins.
Digo isso, de grosso modo, porque a 3ª Seção –que julga PIS/Cofins, IPI e os aduaneiros– é a que tem maior número de processos. Então vai demorar, mas vai ter um efeito maravilhoso no contencioso.
Haverá ainda algum IPI, porque existe a região da Zona Franca.
É. Depois vem o Imposto Seletivo, que vai ser monofásico e tem alguma discussão.
Um tema que pode incentivar o contencioso é a aplicação de multas, que foram vistas como muito rigorosas no PLP 108 mesmo depois de amenizações. Qual a sua análise sobre o tema?
Acho que não. Não teria críticas ao projeto nesse ponto.
As multas existem, no fundo, para incentivar o bom contribuinte. Porque se a multa é muito pequena, acaba que quem paga o tributo eventualmente pode pensar em não pagar porque a questão é ter uma sanção desincentivadora ao comportamento do adiamento de pagamento de tributos. Não acho que seja um fator descalibrado da reforma.
Não é uma coisa que entra no radar. Mas pode ter o debate, se tem qualificação ou não. Isso sempre tem em todas as áreas nossas. O Imposto de Renda tem muito isso também, mas não acho que não será isso que vai criar um contencioso assim não.
Existe alguma estimativa de quanto vai diminuir o tempo de julgamento de contencioso no Carf?
É difícil fazer essa estimativa. Mesmo, confirmando tudo que se imagina sobre PIS/Cofins, ainda tem 5 anos pra lançar e depois julgar esse contencioso. A reforma com certeza vai retirar o grande debate no Carf do que se não aproveita ou não.
Agora, isso vai demorar. O que eu diria é: não podemos esperar pela reforma para reduzir o prazo no Carf. A gente já tá trabalhando muito para reduzir independentemente da reforma, mas ela virá para reduzir.
Inclusive virá pra, digamos, não criar um contencioso tão grande ou tão complexo como temos hoje.
O senhor poderia fazer um balanço em números da sua gestão no Carf de 2023 até agora?
Vou dar um corte aqui no meio do ano, de 2 anos e meio. Conseguimos pegar o Carf, só na 2ª instância, na instância especial, com mais de um R$ 1 trilhão de contencioso. É inadmissível esse valor. Isso dá 10% do PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro. Inadmissível.
Era uma situação inadmissível. Quando entramos com a equipe do ministro Haddad, ele sabia desse problema e também de uma questão central, que era um ponto de honra para ele: a questão do voto de qualidade. Tomar o voto de qualidade. Foi uma negociação extremamente difícil.
O que aconteceu? Em 2 anos e meio, tivemos um 1º ano muito difícil por conta da oscilação legislativa. O que aconteceu em 2023? Veio aquela situação: em janeiro, entre aspas, “empate para o contribuinte”. Em fevereiro veio a medida provisória que restabelecia o voto de qualidade. Depois, essa MP caiu e ficamos com o empate para o contribuinte.
Veio um projeto de lei que finalmente resultou na Lei 14.089. O que aconteceu em 2023? Para respeitar o direito do contribuinte, o ministro baixou uma portaria permitindo que contribuintes com processos pautados naquele período —em que vigorava o empate pró-Fazenda— retirassem seus processos de pauta sem justificativa. Isso foi em fevereiro ou março de 2023.
O que aconteceu? Todos os processos de grandes contribuintes foram retirados, pois os contribuintes esperaram estabilizar a legislação. Depois, quando voltou o empate, todos pediram para julgar. A PGFN, que é parte do Carf, também pediu para retirar processos.
Tivemos um 1º ano em que muitos processos, em termos de valor, foram retirados de pauta por causa desse embate. Houve uma greve rápida no fim de 2023 e início de 2024. Depois retomamos. Mas, no 1º semestre de 2025, houve greve dos auditores, que impactou os conselheiros fazendários.
Ficamos cerca de quatro meses, basicamente, com ações suspensas. Resultado, simplificando: em 2 anos e meio, sendo 2023, 2024 e metade de 2025, tivemos 1 ano e meio “flopado”, como dizem os jovens. Eu, velho, falando expressão de jovem, acho engraçado.
Foi 1 ano e meio difícil em termos de valor, seja porque os contribuintes puderam tirar o processo de pauta, ou porque teve um período de greve no 1º semestre de 2025.
Então, tivemos 1 ano e meio “flopado”, e 1 ano muito bom, que foi 2024.
E o que aconteceu no período? Mesmo com essas dificuldades, conseguimos reduzir muito o quantitativo de processos. Isso é importante porque, quando olhamos determinadas situações, o relevante não é só a foto, é o filme, a tendência.
Quando assumimos, havia 92 mil processos. Em julho deste ano, chegamos a 70 mil. Esse estoque decorre de um fluxo: não significa que julgamos apenas 20 mil, mas que julgamos 20 mil a mais do que entrou no Carf. Porque entrou processo o período inteiro. Há fluxo contínuo.
A tendência de redução de estoque é boa. Conseguimos reduzir, mas não tanto quanto gostaríamos o valor, porque, nos períodos de greve e de instabilidade da referência normativa de como ficaria o voto, todo mundo tirou os grandes processos de pauta.
Mesmo assim, vejo como extremamente positivo. Hoje estamos abaixo de R$ 1 trilhão, em torno de R$ 980 bilhões ou R$ 960 bilhões. Para quem já teve 1,15 trilhão, significa reduzir quase R$ 200 bilhões de estoque.
Repito: de estoque. E há fluxo, tem processo entrando e processo saindo. Não é estoque estático, é dinâmico. Tem entrada e saída.
Acho que a nossa tendência tem sido muito boa, de reduzir a quantidade de processos. Se o número de processos não sobe, vamos reduzir, claramente, tanto o valor como o prazo.
Isso é um ganho enorme que tivemos, numa tendência de queda. Daqui para o ano que vem, vamos conseguir reduzir bastante esse valor também.
Tem alguma estimativa numérica?
Já tivemos R$ 1,36 trilhão. A meta é chegar no final deste ano com R$ 840 bilhões de estoque. “Ah, mas não é nada”. Não é nada? É reduzir em R$ 300 bilhões o estoque.
A ideia é chegar a R$ 840 bilhões em 2025. Depois, R$ 760 bilhões em 2026, e R$ 700 bilhões em 2027. Isso em termos de valor, que colocamos como elemento central. Fora isso, o tempo médio de acervo, queríamos chegar em 900 dias até 2026. Hoje está em 1.100 e poucos dias, mais ou menos 3 anos.
Queríamos ficar em uns 2 anos e meio, mas, ambiciosamente, ver se chegávamos a pouco menos que isso. Pouco mais de 2 anos.
Na Câmara Superior já atingimos o que queríamos: menos de 1 ano, que é o que a lei determina. Há um prazo que a lei determina: no âmbito federal, cada recurso deveria ser julgado em 360 dias. Fazemos uma média, porque há os recursos centrais, que são o voluntário e o especial, mas também há embargos, agravo e tal.
Cada um desses são 360 dias. Mas vamos tentar, simplificadamente, dizer que queríamos julgar nas turmas ordinárias em 360 dias. Na Câmara Superior já estamos em 330 dias.
Já estamos batendo a lei, já estamos bem na Câmara Superior. O esforço hoje é para tentar reduzir esse prazo em turma ordinária, que é a 2ª instância. A Câmara Superior é só uma instância uniformizadora.
Temos uma meta de chegar agora, no final do ano, com R$ 840 bilhões de estoque e, no ano que vem, com R$ 760 bilhões. Nossa meta é chegar no final do ano que vem com a média de 900 dias de acervo. Se chegarmos a 900 dias de acervo no ano que vem, daria 2 anos e meio.
Pegamos aqui com mais de 3 anos. E aproximando mais desse quadrimestre a 2 anos. Achamos que, se o Carf continuar no ritmo que conseguimos imprimir agora, e se conseguir manter no ano que vem, essa entrada do fluxo nas turmas ordinárias pode ser alcançada em 5 anos.
Ou seja, em 2026, 2027, 2028, o Carf estaria julgando tudo em 360 dias. Essa é a grande meta.
Um tópico relacionado ao tempo de julgamento é a rotatividade. O que tem sido feito para diminuir o entra e sai de profissionais, especialmente do lado dos contribuintes? Soubemos, aliás, que o Carf vai oferecer um curso da USP sobre reforma. Esse tipo de prática ajuda a manter os conselheiros?
Uma das questões importantíssimas que conseguimos para a melhoria da rotatividade foi trabalhar uma melhoria na remuneração do conselheiro. Isso é inequívoco.
O que fizemos? Para tentar confluir tanto os interesses do conselheiro em melhorar a remuneração quanto o nosso desejo de reduzir o estoque, o governo criou a possibilidade de pagamento por carga extra aos conselheiros dos contribuintes. Isso melhorou muito a remuneração deles. Melhorou bastante. Melhorou também a atratividade com valorização. Esse é um ponto inequívoco em relação a isso.
Você comentou bem: o Guilherme, que é conselheiro aqui e professor da USP, coordenou –e tenho um agradecimento a ele– o curso de reforma tributária, que é um dos cursos que estamos promovendo, mas outros também.
Nossa ideia é ter valorização tanto pelo lado da melhoria remuneratória quanto pelo lado da mudança de perfil, cada vez mais com representação de conhecimento teórico e prático.
É impressionante como as indicações da Receita têm critérios: é preciso ter no mínimo 5 anos como auditor, experiência na área etc. Há muita gente qualificada. Mas também, os contribuintes, as confederações e as centrais sindicais melhoraram muito suas indicações. Temos uma quantidade imensa de conselheiros pós-graduados. Eu diria até o seguinte: o padrão passou a ser conselheiro pós-graduado. Raramente há conselheiro que não seja pós-graduado em direito tributário. Vários têm mestrado e doutorado. A qualificação técnica é muito grande e vem melhorando a cada ano. Esse é um esforço em que as confederações se uniram a nós e também se sentiram valorizadas.
E uma outra preocupação importante de destacar é a diversidade, principalmente a participação de gênero. Tínhamos poucas mulheres no Carf. Dobramos o número de conselheiras de 2023 para cá. Eram 30 e poucas e são mais de 60 hoje.
Temos uma meta de alcançar 40%, que é a meta do CNJ para desembargadores e tribunais de justiça. Também temos esse mesmo objetivo. Criamos um ambiente muito mais favorável.
O objetivo está sendo cumprido?
Subimos de pouco mais de 20% para 30% e pouco. Ainda não atingimos, mas já aumentamos em 50% o percentual de mulheres, o que é maravilhoso.
Como conseguimos isso? Conversamos com o ministro, e ele baixou uma portaria dizendo que poderiam ser solicitadas listas exclusivas de mulheres, o mesmo que foi feito no CNJ. As confederações e a Receita –mas, principalmente, as confederações– passaram a enviar várias listas. Temos feito essa restrição para que a lista seja, de fato, exclusiva de mulheres. Acho também que esse perfil do Carf está se tornando mais rico por conta disso.
Há mais algum comentário sobre a reforma ou sobre outro tema que o senhor gostaria de abordar?
Um ponto muito importante é a questão central do contencioso. O contencioso, tanto judicial quanto administrativo, deve ser estabilizador de expectativas e de decisões. O que quero dizer com isso? Muitas vezes, o importante é que o empresário –ao investir ou tomar uma decisão de investimento, ou uma pessoa física, ao alocar seus recursos– tenha uma expectativa não só sobre qual é o tributo, com todas as questões legais, mas não o que foi aprovadas no Congresso e sancionadas, mas também sobre qual será a interpretação dada a isso. Às vezes, quando essa interpretação demora, gera desequilíbrios gigantescos.
Dou um exemplo: várias empresas conseguiram liminares para não recolher determinados tributos e outras não conseguiram. Isso gera desequilíbrio na concorrência. Quando há instabilidade em relação à decisão, surgem incertezas na tomada de decisão do agente privado, seja pessoa jurídica, seja pessoa física.
Por isso, é fundamental que o contencioso –tanto a Justiça quanto os tribunais administrativos– dê rapidamente a interpretação que vai aplicar a determinadas teses. Essa interpretação não pode demorar, porque, se não, as empresas adotam medidas, outras não, e isso segue de uma maneira muito ruim. Acho que esse é o ponto central. E para isso, o que precisa ter? Previsibilidade jurídica.
A carga tributária da Suíça é altíssima, mas muita gente investe lá porque sabem que tem previsibilidade, garantia de seu patrimônio e outras questões. Mas a previsibilidade ajuda bastante nesse caminho.
O contencioso cumpre esse papel. Qual o problema do contencioso? É ele demorar. Demora anos, décadas, para chegar a um consenso sobre certos temas.
Dou o exemplo principal em matéria tributária: a criação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. O debate era se ela tinha a mesma base de cálculo do Imposto de Renda e, por isso, se era constitucional. É uma lei de 1989.
Teve um Adin julgado em 2008 dizendo que ela era constitucional. Uma lei de 1989 só teve resposta em 2008. Mas acabou aí? Não. Houve uma necessidade de debate de 2008 até 2023 para finalizar o debate sobre modulação de efeitos dessa decisão. Isso é um inferno para o investidor, uma loucura para o empresário, porque tem concorrente que está com liminar para não pagar a CSLL e ele está.
Isso não pode acontecer. O que temos que trabalhar? O contencioso tem que ser célere. Essa é a questão central. Ele tem que definir logo qual é o seu ponto de vista. Como o administrativo no Brasil não é definitivo –nós não estamos na França, onde o Judiciário não pode rever as decisões administrativas–, aqui a Constituição não afasta e o contribuinte ainda pode levar o isso para o Judiciário, começando pela 1ª instância. Então não pode demorar. Temos que entender que não podemos nos conformar com um contencioso que demora. Isso é uma questão essencial.
Acho que já estamos bem consolidados no país que recorrer administrativamente é barato e fácil. É fácil porque, por exemplo, a Receita Federal hoje é toda eletrônica: você não precisa ir fisicamente a lugar nenhum, faz tudo de casa. É barato porque não paga custas, não precisa nem pagar advogado se não quiser, embora em casos complexos os contribuintes utilizem o profissional.
Tem que se preparar e ter consciência desses pré-requisitos do sistema administrativo brasileiro e não aceitar que ele seja demorado como é. Acho que esse é o grande desafio: investir para que ele seja rápido. Não tem outra solução que não o investimento para que seja rápido. Tem que ser rápido.
Acho que o contencioso tem que ser célere e, para isso, temos que usar novas ferramentas de tecnologia. Desenvolvemos a Iara, Inteligência Artificial em Recursos Administrativos, criada pelo Serpro. Para a curadoria da ferramenta, contratamos a Fundação Getulio Vargas, justamente para ter um elemento externo que ajude a verificar e evitar eventuais vieses da ferramenta para que possa cumprir esse papel. Com uma cultura de litígios de massa, terá que usar tecnologia. As grandes mudanças que vão impactar o contencioso no futuro são a inteligência artificial e a tecnologia.
Quanto foi o investimento na ferramenta?
Não quero revelar, porque são questões comerciais. Mas alguns milhões foram investidos. Parte disso foi feito com o Serpro e outra parte com a Fundação Getúlio Vargas. Mas é uma ferramenta inacabada. Inclusive, temos uma expectativa de avançar com essa ferramenta com o empréstimo internacional do BID. O BID prepara um empréstimo para o Ministério da Fazenda, chamado Profisco, não apenas para a Fazenda Federal. Vai haver uma parte do Profisco para esses sistemas informatizados do Carf, inclusive para Inteligência Artificial.
É impossível imaginar o contencioso do futuro –federal, estadual, municipal, administrativo ou judicial– sem utilização de ferramentas desse gênero.
O grande desafio será como utilizar essas ferramentas, sempre tendo a preocupação de respeitar o direito de defesa, os vários aspectos e evitar os vieses.
Vai estar disponível para o público em geral?
Foi feita para os conselheiros. Qual é a questão da ferramenta de inteligência artificial generativa? Ela aprende com os feedbacks e com as novas inserções. O tipo de ferramenta que utilizamos tem que ser voltado para os conselheiros para que o processo de aprendizagem dela se baseie nas decisões dos conselheiros –tanto dos fazendários quanto dos contribuintes.
Um exemplo: os acórdãos do Carf são todos públicos. Tenho certeza de que, neste momento, algum grande escritório ou empresa já desenvolve ferramentas de inteligência artificial. Não essas abertas e gerais, que apresentam vários problemas –porque buscam tudo na internet e, quando não sabem, inventam. Parecem crianças que fazem coisa errada. Pegam e inventam.
Mas se começa a ter inteligências artificiais específicas, que são profissionalizadas. Há IA de medicina, profissional, que só vai pesquisar apenas em bases científicas aceitas. No meio jurídico, ocorre o mesmo.
Qual é a grande questão? O Carf já disponibiliza e publiciza todos os seus acórdãos. Com isso, advogados estão desenvolvendo ou já contratam empresas para desenvolver uma IA que utilize esses acórdãos e mapeie tendências e decisões.
Tem, inclusive, uma ciência que trata isso: a jurimetria. Existem empresas que fazem, por exemplo, o mapeamento de tribunais superiores, mostrando tendências de turmas e perfis de ministros ou desembargadores. Isso vai ser possível, cada vez mais presente. Acho que vai ter dos 2 lados. Mas a ferramenta que está sendo desenvolvida é para conselheiros, para acelerar o julgamento. Mas diria que a disponibilização dos dados pelo Carf também será utilizado pelo setor privado.