
Há algo quase inevitável quando falamos de incentivos fiscais: mais cedo ou mais tarde, eles se tornam campo de disputa entre contribuinte e Fisco. E, com a Lei do Bem, não foi diferente. Criada com a intenção legítima de impulsionar a inovação tecnológica no país, a legislação parecia, à primeira vista, uma equação simples: invista em pesquisa e desenvolvimento e, em contrapartida, deduza parte do imposto devido. Mas, na prática, a história ganhou nuances bem mais complexas e exige agora uma análise mais profunda sobre seus contornos atuais.
É que o conceito de “inovação” é, por natureza, subjetivo. O que para uma empresa representa um salto tecnológico relevante, para a Receita pode não passar de um aperfeiçoamento interno ou de um ajuste operacional corriqueiro. E é justamente nesse intervalo de interpretações que surgem os pontos de fricção. Afinal, o que tem levado a Receita a considerar certos usos da Lei do Bem como abusivos ou mal aplicados? E, mais importante, como o próprio desenho da lei e seu ambiente regulatório vêm favorecendo ou dificultando uma aplicação técnica e transparente?
Não basta apenas enumerar os problemas apontados pela Receita, é preciso compreendê-los à luz de uma discussão maior sobre o papel dos incentivos fiscais em um sistema tributário que, por vezes, parece preferir a repressão à orientação. Quando o Fisco questiona se determinado projeto é uma inovação real ou apenas uma melhoria incremental, a dúvida que surge não é só técnica, mas filosófica: o Brasil quer mesmo fomentar inovação ou apenas tolerar a inovação que se encaixa perfeitamente em um molde burocrático rígido?
Tomemos o exemplo da exigência de documentação. De fato, rastreabilidade é essencial. Mas há uma diferença significativa entre exigir boa governança e penalizar iniciativas legítimas por não seguirem uma linguagem documental que, muitas vezes, não dialoga com a prática do setor produtivo. Essa desconexão, ainda pouco discutida, revela um conflito silencioso entre a dinâmica da inovação e a lógica fiscalista tradicional, e talvez aí resida um dos maiores entraves do incentivo. Afinal, quantas boas ideias são abortadas antes mesmo de serem formalizadas, por medo da insegurança jurídica que cerca a Lei do Bem? O mesmo pode ser dito sobre a análise de intenção. Embora o desvio de finalidade seja uma preocupação válida, o uso cada vez mais frequente de critérios subjetivos por parte da Receita (como impacto percebido, grau de inovação ou aderência estratégica) abre espaço para arbitrariedades. E, nesse ponto, a questão que precisa ser feita é: o risco de autuação não estaria desestimulando justamente os projetos que mais precisamos apoiar? Ou seja, estamos criando um ambiente no qual a única inovação segura é a que não ousa.
Isso se agrava quando olhamos para o papel da empresa no projeto. A exigência de protagonismo é razoável, mas precisa considerar a complexidade das cadeias produtivas e de inovação no Brasil. Em muitos casos, a terceirização não representa ausência de controle, mas uma resposta natural à escassez de competências internas. Penalizar essas escolhas sem considerar seu contexto é, na prática, excluir pequenas e médias empresas do acesso ao benefício, justamente aquelas que mais poderiam se transformar com ele.
Da mesma forma, a exigência de alinhamento entre o projeto e o core business da empresa revela um certo conservadorismo estrutural. A inovação, por definição, muitas vezes nasce fora do escopo tradicional de atuação. Ao exigir coerência excessiva, corre-se o risco de limitar a criatividade corporativa a um círculo previsível, negando a própria essência do que se busca incentivar. Será que queremos um ambiente de inovação real ou apenas confortavelmente regulado?
Por trás de cada glosa, há mais do que uma suposta má aplicação da lei. Há uma cultura fiscal que, ainda hoje, trata com suspeita qualquer estratégia de planejamento tributário, mesmo quando amparada em norma expressa. E talvez essa seja a reflexão mais necessária: será que a Receita — e o próprio Estado brasileiro — está preparada para um modelo que incentiva, antes de punir? Porque, no caso da Lei do Bem, o incentivo exige confiança mútua, e confiança se constrói com diálogo, previsibilidade e alinhamento institucional. Se a Lei do Bem deve seguir existindo, e muitos defendem que sim, ela precisa ser tratada como uma política de Estado e não como uma exceção fiscal sob vigilância permanente. Precisa ter regras claras, sim, mas também flexibilidade para abraçar a diversidade das iniciativas inovadoras. E, acima de tudo, precisa ser acompanhada de uma mudança de mentalidade que reconheça que investir em P&D é arriscado, complexo e, muitas vezes, falho, exatamente como toda jornada de avanço tecnológico.
Ao final, a pergunta não é apenas o que a Receita tem entendido como abuso, mas até que ponto essa leitura contribui para o fortalecimento do ecossistema de inovação no país. Se a resposta for negativa, talvez o problema não esteja no contribuinte — mas no modelo que escolhemos para regular a inovação. E isso, convenhamos, merece ser debatido com muito mais profundidade.
Diogo Thaler do Valle é advogado, contador e especialista em tributos e estratégia empresarial. Com uma trajetória consolidada e quase duas décadas atuando em grandes corporações é fundador do Power Tax Brasil e atualmente ocupa o cargo de Diretor Tributário da Philip Morris Brasil, liderando iniciativas fiscais e tributárias locais e internacionais. Possui passagem por empresas de consultoria e auditoria, Ernst & Young, onde acumulou vasta experiência na área fiscal, assessorando companhias de diferentes segmentos em desafios tributários complexos.
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