A nova tributação de dividendos atinge o Simples Nacional? Entenda a polêmica da Lei nº 15.270/2025

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Por Marcelo John Cota de A. Filho

Por décadas, a isenção do Imposto de Renda sobre os lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas consistiu numa regra geral que pretendia compensar a alta carga tributária incidente sobre os resultados das empresas sediadas em território nacional. A lógica era clara: se o empresário já arca com tributação elevada através da pessoa jurídica, deve ser desonerado no momento da distribuição de lucros para a pessoa física.

No entanto, a recente Lei nº 15.270/2025, sancionada ao final de novembro de 2025, alterou esse cenário completamente. Visando compensar a perda de arrecadação decorrente do aumento da faixa de isenção do IRPF para rendas mensais de até R$ 5 mil, referida lei instituiu a chamada “tributação de altas rendas”.

Em termos práticos, a nova norma impõe a retenção na fonte de 10% de Imposto de Renda sempre que os lucros e dividendos pagos por uma mesma pessoa jurídica a uma pessoa física, num mesmo mês, ultrapassem R$ 50 mil. Adicionalmente, criou-se a figura da tributação mínima no ajuste anual, incidente quando o total de rendimentos recebidos pela pessoa física no ano ultrapassar R$ 600 mil.

Esse novo cenário tem suscitado uma discussão ampla e relevante: essas novas limitações e tributações de dividendos também se aplicariam às empresas optantes pelo regime do Simples Nacional? A ausência de regulamentação específica para o regime simplificado no novo texto legal lançou uma sombra de insegurança jurídica sobre as regras aplicáveis a esse regime, que corresponde à opção da maioria das empresas sediadas no Brasil.

Com a proximidade da vigência das novas regras (1º de janeiro de 2026), faz-se necessário aprofundar essa discussão e entender se as distribuições de lucros no âmbito do Simples Nacional estarão sujeitas à retenção na fonte e à tributação mínima introduzidas pela Lei 15.270/2025.

A regra de isenção de lucros no Simples Nacional

Antes de analisar o eventual conflito normativo decorrente da Lei 15.270/2025, é crucial relembrar o que diz a legislação específica do Simples Nacional sobre a distribuição de lucros.

A Lei Complementar nº 123/2006 (o Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte) contém regra própria e especial acerca da tributação dos lucros. De acordo com o seu art. 14, são isentos do Imposto de Renda (tanto na fonte quanto na declaração de ajuste anual do beneficiário) os valores efetivamente distribuídos aos sócios ou titulares de empresa optante pelo Simples Nacional, exceto se tais valores corresponderem a pró-labore, aluguéis ou serviços prestados.

Em outras palavras, todo lucro distribuído aos sócios de uma micro (ME) ou pequena empresa (EPP) no Simples é isento de Imposto de Renda, independentemente do montante que represente esse lucro, desde que não se confunda com remunerações de natureza diversa (como pró-labore, pagamentos de aluguéis e contraprestação por serviços prestados).

A própria LC 123/2006 estabelece um critério para delimitar essa isenção quando a empresa não mantém escrituração contábil regular. Nesse caso, a lei remete aos percentuais previstos no art. 15 da Lei nº 9.249/1995: o lucro distribuído será considerado isento até o montante equivalente a esses percentuais aplicados sobre a receita bruta, deduzido o valor já recolhido no Simples a título de IRPJ.

Contudo, há uma importante ressalva: o §2º do art. 14 da LC 123/2006 dispõe expressamente que esse limite não se aplica caso a pessoa jurídica mantenha escrituração contábil e evidencie lucro em valor superior ao limite presumido. Ou seja, se a micro ou pequena empresa do Simples possui contabilidade organizada, ela pode distribuir a totalidade do lucro contábil apurado, sem qualquer limite de valor, com isenção integral de Imposto de Renda para o beneficiário.

Inclusive, a própria Receita Federal confirmou recentemente essa exata interpretação na Solução de Consulta COSIT nº 244/2025 (também datada de novembro de 2025), ao esclarecer que as ME/EPP optantes pelo Simples podem distribuir lucros isentos desde que mantenham escrituração contábil regular, podendo o beneficiário usufruir da isenção sobre todo o lucro comprovado contabilmente, sem aplicação de qualquer teto.

Frisa-se que, embora a referida Solução de Consulta não tenha analisado o mérito do potencial conflito normativo avaliado a seguir neste artigo, fato é que ela evidencia a confirmação da Receita Federal de que o Simples Nacional possui regime específico no que tange à distribuição de lucros.

Em suma, a legislação complementar específica do Simples Nacional sempre garantiu isenção plena na distribuição de lucros aos sócios, diferentemente dos regimes de Lucro Real ou Presumido, em que a isenção advinha das previsões contidas na Lei 9.249/95, com base em premissas gerais. Essa isenção no Simples é parte estrutural do regime simplificado, concebido para favorecer as micro e pequenas empresas.

A nova Lei 15.270/2025 abrange o Simples? O aparente conflito normativo decorrente da inovação legislativa

Considerando o caráter abrangente atribuído ao discurso político que culminou na edição da Lei 15.270/2025, que sempre indicou a necessidade de compensação orçamentária pela desoneração de baixos rendimentos com a tributação de altas rendas, surge a dúvida quanto à aplicação dos efeitos dessa nova legislação para o regime do Simples Nacional.

Isso porque presume-se, pelo teor dos discursos relacionados à promulgação da Lei 15.270/2025, que se pretendia a tributação dos empresários legalmente definidos como de “alta renda” de forma generalizada, avaliando-se a questão muito mais pela perspectiva dos ganhos auferidos pela pessoa física do que pelo regime tributário da empresa que representa a fonte da distribuição de lucros. Logo, não faria sentido “vender” a proposta legislativa como a tributação dos empresários de alta renda desconsiderando aqueles que são sócios ou titulares de empresas optantes pelo Simples Nacional, que representam quantitativamente a maioria esmagadora no nosso país.

Nesse contexto, então, surge o debate sobre um possível conflito entre a Lei 15.270/2025, ordinária e de caráter geral, e a legislação do Simples, complementar e de caráter especial. A discussão central é se a nova tributação sobre dividendos alcança ou não as empresas optantes do Simples Nacional.

Para encontrar a solução, é preciso analisar o escopo das normas vigentes.

Quanto à Lei 15.270/2025, referido diploma legal introduz os artigos 6º-A e 16-A à Lei 9.250/1995 (que regulamenta o imposto de renda das pessoas físicas) e altera o caput do art. 10 da Lei nº 9.249/1995 (dispositivo que indica a isenção na distribuição de lucros e dividendos por pessoas jurídicas), instituindo a “tributação de altas rendas” mediante a aplicação de Imposto de Renda Retido na Fonte e via “imposto mínimo” anual para rendimentos acima dos novos limites, considerando para o cômputo dessas “altas rendas” o valor recebido pela pessoa física a título de lucros distribuídos por pessoas jurídicas.

Destaca-se que o novo texto do art. 10 da Lei 9.249/95 (com a redação dada pela Lei 15.270/2025) não menciona em nenhum momento as empresas optantes do Simples Nacional. Pelo contrário, o novo dispositivo faz menção expressa à distribuição de lucros ou dividendos “pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado”, deixando de fora as empresas optantes pelo regime simplificado.

Ao mesmo tempo, quanto à Lei Complementar 123/2006, continua em pleno vigor o art. 14 dessa Lei Complementar, assegurando a isenção total de Imposto de Renda sobre os lucros distribuídos pelas ME/EPP optantes do Simples (dentro das condições já explicadas). Essa disposição não foi alterada nem mencionada pela nova lei ordinária.

Diante disso, deve se aplicar um princípio basilar da hermenêutica jurídica: lei geral nova não revoga lei especial anterior, salvo se houver manifestação inequívoca do legislador nesse sentido. Esse princípio, consagrado no art. 2º, §2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), impede que uma lei de caráter geral (como é o caso da Lei 15.270/25, voltada genericamente à tributação da renda) derrogue uma lei específica previamente existente (no caso, a LC 123/06 que trata do regime diferenciado das micro e pequenas empresas) na ausência de incompatibilidade ou revogação expressa.

Aqui, não se identifica nenhuma incompatibilidade material insanável entre as normas: a lei nova simplesmente estabeleceu requisitos e limites para a isenção de dividendos no regime geral, mas não tratou do regime do Simples Nacional, nem explicitamente nem por implicação. Logo, a interpretação sistemática leva à conclusão de que as regras específicas do Simples prevalecem para as empresas optantes pelo regime simplificado, não sendo alcançadas pelas restrições da Lei 15.270/2025 no tocante à distribuição de lucros.

Há ainda outro fundamento jurídico relevante que reforça essa conclusão: o tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, incluindo regimes tributários diferenciados como o Simples, é matéria reservada à lei complementar pela própria Constituição Federal (art. 146, III, “d”).

A LC 123/2006 foi editada justamente para dar cumprimento a esse mandamento constitucional, estruturando um microssistema tributário próprio para os pequenos negócios. Disso decorre que uma lei ordinária não pode revogar, modificar ou restringir validamente uma isenção prevista em lei complementar, quando essa versa sobre matéria sob reserva constitucional de lei complementar.

E, consolidando esse entendimento, é válido pontuar que o Supremo Tribunal Federal tem sólida jurisprudência no sentido de que norma de lei complementar, no que tange a assunto de competência reservada (como o regime do Simples), não pode ser eliminada ou mitigada por lei ordinária.

Portanto, sob a ótica técnico-jurídica, a nova tributação de dividendos introduzida pela Lei 15.270/2025 não se aplica às empresas optantes do Simples Nacional, uma vez que estas continuam regidas pela norma especial da LC 123/06, que lhes garante isenção irrestrita na distribuição de seus lucros e resguarda a isenção desses lucros na declaração anual do beneficiário.

Portanto, não há teto de R$ 50 mil mensais ou qualquer limitação para isenção no Simples, pois toda a distribuição de lucro contabilmente apurado pode ser feita sem retenção na fonte nem incidência na declaração do sócio, conforme as regras próprias desse regime.

Riscos e perspectivas: segurança jurídica em jogo

Mesmo com argumentos jurídicos robustos amparando a não incidência da Lei 15.270/2025 sobre o Simples Nacional, o tema ainda inspira cautela. Deve-se reconhecer que existe, sim, um risco de autuação fiscal caso prevaleça uma interpretação mais “agressiva” por parte do Fisco.

Infelizmente, argumentos consequencialistas, que se prezam mais a resguardar a arrecadação do que a observar a legalidade, têm sido amplamente empregados em matéria tributária para justificar a solução de muitos litígios significativos nos últimos anos. E é justamente sob essa perspectiva que não se olvida a possibilidade de relativização, por parte das autoridades fazendárias, do raciocínio jurídico disposto acima.

Seria possível, por exemplo, tentar argumentar que a reserva de matéria legal por legislação complementar não alcança a isenção do art. 14 da LC 123/2006, sob pretexto de que o dispositivo beneficia apenas os sócios pessoas físicas – os quais não estariam diretamente protegidos pela regra constitucional do tratamento favorecido –, e não a pessoa jurídica optante pelo regime simplificado em si.

Sob esse ponto de vista, poder-se-ia alegar que a tributação sobre os dividendos recebidos pelos sócios (pessoas físicas) não violaria a reserva de lei complementar, permitindo à lei ordinária nova revogar a isenção na esfera do beneficiário.

Trata-se de raciocínio questionável, ao menos no que toca à retenção na fonte do imposto de renda sobre os lucros, por se tratar de obrigação de responsabilidade da própria pessoa jurídica, capaz de culminar a ela a aplicação de penalidades em caso de não cumprimento (revelando que o teor da determinação legal não se trata de benefício exclusivo da pessoa física do sócio ou titular).

Além disso, referido argumento não soluciona outros problemas da nova legislação, como o fato de o novo caput do art. 10 da Lei 9.249/95, ao tratar expressamente da distribuição de lucros e dividendos, dispor que as regras são aplicáveis para pessoas jurídicas “tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado”, não fazendo qualquer menção quanto à aplicação das novas regras para pessoas jurídicas optantes pelo Simples Nacional.

Todavia, embora o argumento seja questionável, não se pode descartar a possibilidade de autuação, o que indica a possibilidade de uma onda de litígios judiciais sobre a temática a partir de 2026, com empresas ingressando em juízo para assegurar o direito à isenção na distribuição dos lucros que a LC 123/2006 lhes garante.

Em conclusão, a polêmica em torno da tributação de dividendos no Simples Nacional, suscitada pela Lei 15.270/2025, evidencia um ponto fundamental: alterações na legislação tributária devem ser acompanhadas de uma visão sistêmica do ordenamento, respeitando os princípios e regras especiais estabelecidas para regimes diferenciados, sob pena de comprometer a segurança jurídica.

Por mais bem-intencionadas que algumas medidas possam ser em termos de política fiscal, elas não podem se sobrepor ao que dispõe claramente o ordenamento. Na polêmica em discussão, todos os elementos jurídicos apontam para a continuidade da isenção irrestrita na distribuição de lucros pelas empresas do Simples Nacional, cabendo ao legislador (e não ao intérprete isolado) adequar o sistema normativo de modo a propiciar essa tributação.

Não sendo a atividade legiferante praticada até então suficiente para permitir a tributação nesses casos, não deve a segurança jurídica ser sacrificada por conveniência política e/ou orçamentária (e prezemos para que o Poder Judiciário não chancele essa insegurança). O que deve ocorrer é a produção de novos textos legais, claros e sem lacunas, que solucionem o problema jurídico evidenciado, caso seja essa a vontade política emanada pelos representantes do povo brasileiro.


Marcelo John Cota de A. Filho é Advogado tributarista no escritório Schiefler Advocacia. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Gestão Tributária pela FIPECAFI. Participou da revisão do texto da Reforma Tributária no Senado Federal.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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