PLP 108: resolve a situação de monetização de saldos credores de ICMS no período de transição?

Calculadora ICMS

Por Maria Isabel Ferreira e Fernanda Bandeira

No debate sobre a Reforma Tributária do Consumo, um dos temas mais sensíveis e aguardados pelas empresas no Brasil é o desfecho dos saldos credores de ICMS. O Projeto de Lei Complementar n.º 108/24,  em tramitação na Câmara dos Deputados, dedica um capítulo específico ao assunto. (Título IV – Disposições relativas à Transição do ICMS).

Poucos artigos que podem impactar, positiva ou negativamente, a depender de como serão regulamentados, registros fiscais contábeis e estratégias de monetização de saldos credores de ICMS das empresas brasileiras. 

As reflexões que faremos permeiam se efetivamente a nova regulamentação vai resolver o problema histórico da monetização desses valores.

A resposta, infelizmente, não se limita a um “sim” ou “não”. O texto propõe avanços importantes, mas carrega ambiguidades que podem perpetuar velhas inseguranças jurídicas e operacionais.

Saldo credor ou crédito acumulado? Não é só semântica

Quem atua na área fiscal sabe que “saldo credor” e “crédito acumulado” não são sinônimos – e a diferença entre eles pode custar caro. 

Primeiro ponto a ser esclarecido aqui, é que o capitulo todo da norma supracitada utiliza a terminologia “saldo credor” de ICMS para enquadrá-lo nos dispositivos que preveem formas de sua utilização. No sistema atual, que ainda convivemos e que iremos conviver por um tempo, e que dá origem a todo o disposto legal, trata “saldo credor” de ICMS de forma bem distinta do que chamamos de “crédito acumulado” de ICMS. O tema é extremamente complexo, mas interessante na mesma medida.

Essa distinção, por mais técnica que pareça, define o destino de bilhões de reais nas empresas brasileiras. Trata-se de um tema contábil, tributário e estratégico, com impacto direto no caixa, no resultado e até nas decisões de investimento.

Saldo credor de ICMS: é aquele que a empresa constitui em sua escrita fiscal, de acordo com os critérios estabelecidos pelos Estados ou Distrito Federal, decorrente de aquisições de mercadorias e/ou ativo imobilizado. Existe prazo para que seja constituído, existe regra e existe, para muitas atividades de empresas brasileiras, dificuldade em transformar esse saldo em “moeda” fiscal ou financeira.

Crédito acumulado de ICMS: eu diria que se trata de uma espécie dentro do gênero “saldo credor”, pois é o montante julgado pelos Estados e Distrito Federal (e cada um tem o seu próprio critério, acreditem!) como algo que pode ser transformado em moeda fiscal ou financeira, é o montante que pode ser objeto de ressarcimento juntos aos Estados e DF e, em determinados casos, transferidos para terceiros.

Para tentar tangibilizar com exemplos a diferença de “saldo credor” e “crédito acumulado”, o primeiro pode acontecer em casos em elevado volume de estoque (em que a empresa tem mais entradas de mercadorias que saídas), em casos de venda abaixo do preço de custo (campanha comercial ou decorrente do momento do negócio), em situações em que a alíquota média de saídas é menor que a alíquota média de vendas, e o segundo, via de regra, decorre de situações crônicas em que alíquota média de saída é menor que entrada, tais como: empresas exportadoras, empresas com benefício fiscal em que a base de cálculo do ICMS é reduzida, grande volume de venda para Estados com redução de alíquota, entre outras.

Atualmente, julgamos que esse tema de monetização saldos credores e/ou créditos acumulados é algo tão sensível para muitas empresas no Brasil, impactando fluxo de caixa, registros contábeis e até desestimulado a realização de negócios no Brasil. A excelente notícia que após implementado o novo sistema, isso deve melhor de maneira significativa. Porém, agora estamos tratando do efeito de um sistema disfuncional para o outro, e o que fazer com esses montantes.

O que diz o PLP 108/24?

O Artigo 132 do projeto parece promissor: determina que os saldos credores de ICMS existentes em 31 de dezembro de 2032 deverão ser reconhecidos pelos estados e pelo Distrito Federal, permitindo sua utilização pelos contribuintes. A redação inclui critérios objetivos, como a existência do crédito na escrituração fiscal e a não utilização até a data de corte.

Art. 132. Os saldos credores relativos ao ICMS existentes em 31 de dezembro de 2032 serão reconhecidos pelos Estados e pelo Distrito Federal e utilizados pelos contribuintes nos termos deste Capítulo.

§ 1º Para efeito do disposto neste artigo, considera-se saldo credor o valor do imposto previsto no caput deste artigo que:

I – seja admitido pela legislação estadual ou distrital vigente em 31 de dezembro de 2032 e decorra de operações ocorridas até a referida data;

II – esteja regularmente apurado na escrituração fiscal do estabelecimento, ainda que a escrituração tenha sido realizada após 31 de dezembro de 2032;

III – não tenha sido compensado ou utilizado pelo contribuinte até 31 de dezembro de 2032; e

IV – tenha sido homologado nos termos do art. 134 desta Lei Complementar.

§ 2º Consideram-se homologados os créditos reconhecidos após o prazo a que se refere o caput deste artigo, inclusive os resultantes de decisões administrativas definitivas ou judiciais com trânsito em julgado favoráveis ao sujeito passivo.

Em um primeiro momento, soa como um alívio: todos os saldos escriturados seriam, enfim, reconhecidos e aproveitados. Mas essa leitura otimista logo esbarra na exigência de homologação – e no fato de que esse processo seguirá as regras de cada ente federativo.

O Artigo 134 estabelece que os pedidos deverão ser protocolados até cinco anos após a virada do sistema (ou seja, até 2037) e que os estados terão até dois anos para se manifestar. Passado esse prazo, o crédito será considerado automaticamente homologado. Um avanço, sem dúvida. Mas o texto também afirma que o pedido será processado conforme a legislação local. Na prática, isso pode nos levar de volta ao mesmo labirinto de regras, exigências e entraves que hoje tornam a monetização quase impossível em muitos estados.

Art. 134. Para efeito de homologação dos saldos credores a que se refere o art. 132  desta Lei Complementar, ressalvado o disposto no § 1º deste artigo, será observado o seguinte:

I – o interessado deverá protocolar o pedido no prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do dia 1º de janeiro de 2033; e

II – o Estado ou o Distrito Federal deverá pronunciar-se no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) meses, contado da data do respectivo protocolo.

(…)

§ 3º Na ausência de resposta ao pedido de homologação nos prazos a que se referem o inciso II do caput, o inciso II do § 1º e o § 2º deste artigo, os respectivos saldos credores serão considerados homologados.

§ 4º A homologação de que trata o caput deste artigo impede a apuração e o lançamento de créditos tributários relativos ao ICMS relacionados ao respectivo saldo credor.

§ 5º O pedido de homologação de saldo credor de que trata este artigo será processado nos termos da legislação do Estado ou do Distrito Federal.

A exigência de homologação, ainda que com prazos definidos, pode reabrir a porta para a subjetividade. Estados com processos lentos ou inexistência de normas claras podem transformar o que deveria ser um direito líquido e certo em uma nova fonte de insegurança.

Mais do que isso: permanece a dúvida sobre o que será efetivamente considerado “saldo credor” para fins de monetização. Serão todos os valores escriturados, como sugere o texto? Ou apenas os créditos já reconhecidos como acumulados, segundo critérios atuais dos Estados? 

A depender da interpretação, o impacto muda completamente, tanto nos registros contábeis quanto nas estratégias de aproveitamento e planejamento fiscal.

Quando da leitura do § 5º, em especial, o trecho que diz que o pedido de homologação será processado nos termos da legislação do Estado ou Distrito Federal, pode trazer uma falta de esperança de que esse processo será simples, claro e objetivo, como deveria ser, porque muitos Estados, se quer, tem normas regulando esse tema. Ainda, existem Estados que tem norma, porém, não são tão complexas que esse saldos credores acabam sendo “perdidos” impactando negativamente os fluxos de caixa e o resultado dos balanços de empresas no Brasil. Não gostaríamos de ver esse filme se repetindo.

Há motivos para otimismo?

Apesar dos pontos de atenção, o PLP 108/24 também traz boas notícias. A partir do Artigo 136, o texto abre possibilidades mais modernas de uso dos créditos – por exemplo, compensações, transferências e atualizações. É uma sinalização de que, sim, o legislador busca avançar em direção a um sistema mais justo, ágil e racional.

Mas, para que esse avanço seja completo, será preciso garantir segurança jurídica e isonomia no tratamento dos saldos. Não basta prometer monetização futura se o processo continuar submetido à lógica fragmentada das legislações estaduais.

Esse tema, apesar de parecer apenas jurídico tributário, impacta diretamente os critérios e efeitos contábeis de reconhecimento ou baixa de ativo. Aqui surge a necessidade de  avaliação dos cenários de realização considerando aspectos de transição, e o que isso pode impactar o balanço das companhias. Temos certeza que o impacto é muito relevante.

O fato é que empresas, contadores, advogados e gestores financeiros precisam, desde já, analisar seus saldos, revisar estratégias e se preparar para o processo de transição. O impacto será grande, inclusive nos balanços patrimoniais. A definição sobre o que será efetivamente considerado saldo credor monetizável pode alterar ativos relevantes, afetar decisões de investimento e mudar a relação das companhias com o fisco.

O PLP 108/24 representa uma oportunidade histórica de corrigir distorções acumuladas há décadas. Mas, para que isso aconteça de fato, é preciso transformar a boa intenção em clareza normativa. E, mais do que nunca, garantir que saldo credor não seja apenas um número na escrita fiscal, mas um ativo real, com valor, liquidez e segurança jurídica.


Maria Isabel Ferreira é sócia-líder de Tributos Indiretos da KPMG no Brasil.

Fernanda Bandeira é gerente sênior de Tributos Indiretos da KPMG no Brasil.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

Rolar para cima