Questão de princípios (VI) – Transparência: tributação como texto, não subtexto

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Por Heron Charneski

O conto “O Fim de Alguma Coisa” (The End of Something), de Ernest Hemingway, publicado em 1925 e emblemático do estilo conciso do autor, pode ser associado à sua “teoria do iceberg”. Nela, emoções e significados profundos são transmitidos por meio de subtextos e omissões deliberadas. O conto se inicia assim:

“Houve um tempo em que Hortons Bay era uma cidade madeireira. Ninguém que vivia lá ficava livre do zumbido das grandes serras da beira do lago. Mas veio um ano em que faltaram toras para fazer tábuas. Todas as pilhas de tábuas foram levadas. Toda a maquinaria transportável do grande prédio da serraria foi retirada e levada para bordo de uma escuna pelos homens que haviam trabalhado lá. A escuna zarpou da baía para o lago aberto, levando as duas grandes serras, o equipamento rolante que levantava as toras, as correias e ferragens empilhados sobre a carga de madeira. Com o porão coberto de lonas bem amarradas, as velas da escuna pegaram o vento e levaram-na para o lago aberto com tudo o que tinha feito da serraria uma serraria e de Hortons Bay uma cidade”.

O cenário desolado de uma antiga cidade madereira irá servir como metáfora para a decadência de um relacionamento amoroso entre Nick e Marjorie, narrado em seguida (sem spoilers). A habilidade de Hemingway está justamente na ausência de explicações explícitas. O leitor precisa inferir sentimentos e motivações a partir do ambiente apresentado.

Esse mesmo cenário de decadência pode ser comparado ao atual sistema tributário brasileiro, no qual a elevada complexidade e litigiosidade acabam por ocultar um elemento central: a realidade da carga tributária.

Ocorre que a Emenda Constitucional nº 132, de 20/12/2023, incluiu o princípio da transparência entre aqueles que devem orientar o Sistema Tributário Nacional. 

Já o texto original da Constituição, em seu art. 150, § 5º, previa que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.

A regulamentação, porém, só veio em 2012, com a Lei nº 12.741/2012, a chamada “Lei do Imposto na Nota”. A norma determinou que documentos fiscais destinados ao consumidor final informassem o valor “aproximado” dos tributos federais, estaduais e municipais que influem na formação do preço.

É justamente esse “valor aproximado” que surpreende qualquer consumidor mais atento. Afinal, se tributo é preço, por que não revelar o valor exato?

A resposta está em uma característica pouco cidadã do nosso sistema: a existência de múltiplos tributos, de diferentes entes federativos, todos incidentes sobre o consumo e com bases econômicas parcialmente coincidentes, e muitas vezes uns sobre os outros.

A chamada cobrança “por dentro” ocorre quando o tributo está embutido na própria base de cálculo, incidindo sobre si mesmo.

No cálculo “por fora”, mais transparente, um produto de R$ 100,00 sujeito a alíquota de 18% terá tributo de R$ 18,00, resultando em valor final de R$ 118,00 ao consumidor. Essa é a lógica adotada pela Reforma Tributária do Consumo (RTC) para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e para a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

No cálculo “por dentro”, porém, os R$ 100,00 já incluem o tributo. Assim, a alíquota nominal de 18% resulta em valor efetivo maior, pois o tributo embutido é de R$ 21,95, equivalente a uma alíquota efetiva de 21,95%.

Nesse modelo, ainda vigente, o “valor aproximado” informado na nota fiscal funciona como o subtexto de Hemingway: algo indica que existe ali um problema, mas não se revela exatamente quanto do preço é tributo.

Apesar da evidente redução de transparência, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia declarado constitucional essa técnica de cálculo.

Em 1999, no Recurso Extraordinário nº 212.209, a Corte decidiu que o ICMS não poderia ser excluído da sua própria base de cálculo, afastando o entendimento de que a Constituição admitiria apenas uma base de cálculo “por fora”. 

Em 2011 essa jurisprudência foi confirmada, já em regime de repercusão geral, assentando o Plenário do STF que “a base de cálculo do ICMS, definida como o valor da operação da circulação de mercadorias (art. 155, II, da CF/1988, c/c arts. 2º, I, e 8º, I, da LC 87/1996), inclui o próprio montante do ICMS incidente, pois ele faz parte da importância paga pelo comprador e recebida pelo vendedor na operação” (Recurso Extraordinário nº 582.461). A tese firmada nesse Tema nº 214 de repercussão geral foi a de que “é constitucional a inclusão do valor do ICMS na sua própria base de cálculo”.

Além da cobrança “por dentro”, há a questão dos tributos sobre tributos. 

A Constituição define competências tributárias com base em materialidades distintas. Contudo, do ponto de vista econômico, todas acabam recaindo sobre a renda — recebida, consumida ou acumulada. Como se aprende em doutrina clássica, temos “mais formas ou moldes jurídicos que substâncias econômicas para enchê-las”.

Por isso, quando se discute “tributo sobre tributo”, a pergunta correta não é se há superposição econômica (o que é inevitável), mas se o conceito constitucional que fundamenta determinado tributo admite ou não que outro tributo componha sua base de cálculo.

O STF enfrentou essa questão no julgamento do Tema 69 de repercussão geral (Recurso Extraordinário nº 574.706), em 2017, ao excluir o ICMS das bases de cálculo de PIS e COFINS. Não se decidiu ali, como lembrou o voto do Ministro Luiz Fux, sobre a possibilidade geral de tributo sobre tributo, mas sobre o alcance dos conceitos de “faturamento” e “receita”.

Essa, aliás, era a compreensão do Ministro Ilmar Galvão, no caso de 1999 do “ICMS por dentro”, quando anotou que o sistema tributário brasileiro “não repele a incidência de tributo sobre tributo”, porque a única exceção prevista na Constituição seria do inciso XI, parágrafo 2º do art. 155 da Constituição, que prevê a exclusão do IPI da base de cálculo do ICMS.

Assim, não se há de falar em “teses filhotes” do Tema nº 69, mas, eventualmente, de teses irmãs, todas filhas do conceito constitucional da materialidade tributária.

O dado agora a ser levado em conta é que, mesmo que a jurisprudência tenha admitido as técnicas de cobrança descritas, a Emenda nº 132/2023 impõe um novo parâmetro interpretativo: o princípio da transparência.

O princípio da transparência pode ser entendido como a obrigação de que os tributos sejam claros, evidenciáveis, identificáveis para o contribuinte e para o público em geral — ou seja, que fique visível, e não apenas no subtexto, quanto se está pagando, por que se está pagando e como se chegou àquele valor.


Em termos práticos, o contribuinte deve poder ver no documento fiscal ou em registro contábil o montante do tributo incidente, sem que ele esteja escondido dentro do preço. Base de cálculo e alíquota devem ser textos claros, evitando-se tributo sobre tributo que torne opaca a carga real.

Nesse sentido, a Lei Complementar nº 124/2025 avançou ao excluir, da base de cálculo do IBS e da CBS, o próprio montante desses tributos, além do montante do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

A tributação “por fora”, com destaque explícito do IBS e da CBS, tende a ampliar a visibilidade da carga tributária e reforçar a cidadania fiscal. Quando o tributo é invisível, o cidadão não sabe que está pagando; quando é evidente, pode cobrar.

Apesar dos avanços, há riscos. Se IBS e CBS forem incluídos na base de cálculo do ICMS e do ISS durante a transição — cenário possível diante da ausência de norma clara que vede essa prática e das notícias anunciadas —, parte da opacidade atual permanecerá. O tributo continuará embutido no preço. A transparência se diluirá.

Além disso, o Imposto Seletivo (IS) adotará base “por dentro”, reduzindo mais uma vez a visibilidade da carga final para o consumidor.

A reforma tributária inaugurou a promessa de um sistema mais simples, neutro e transparente. No entanto, conforme avançam debates sobre transição e operacionalização, surgem perigos de retrocesso.

Se o tributo volta a se esconder no preço, se tributo se soma a tributo sem destaque, se o cálculo retorna ao opaco, o sistema perde eficiência e legitimidade. A inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS e do ISS durante a fase de transição, assim como a persistência da base “por dentro” no Imposto Seletivo, representam vícios que atentam contra o princípio da transparência. 

Para que a reforma cumpra seu objetivo, não basta mudar leis: é preciso que o desenho tributário permita ver o tributo, entendê-lo, lê-lo. Do contrário, continuaremos como em Hortons Bay, onde tudo o que fez daquela cidade uma cidade se perdeu sem que ninguém percebesse.

Em suma: transparência não é opcional. É pilar do novo sistema.

Sem ela, corremos o risco de reconstruir o labirinto tributário, apenas com outro nome. É hora de garantir que o que hoje se esconde não volte a se ocultar amanhã.


Heron Charneski. Doutor e Mestre em Direito Tributário (USP), Mestre em Direito Comercial Internacional (University of California, Davis). Advogado e Contador. Presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET) e Sócio-Fundador do Charneski Advogados.


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