Reforma tributária e o agronegócio: obrigações acessórias, conformidade e o desafio da transição

Por Luiz Roberto Peroba e Stella Oger Santos

A reforma tributária marca uma mudança estrutural na forma de tributar o consumo no Brasil, com impactos profundos sobre o agronegócio. Mais do que discutir alíquotas ou regimes favorecidos, o ponto determinante para a competitividade do setor será a capacidade de se adaptar às novas exigências de conformidade. Isso inclui o redesenho das obrigações acessórias, o controle documental e a revisão das rotinas de apuração de créditos em cadeias produtivas longas e complexas. 

Grande parte das operações do agronegócio foi historicamente beneficiada por desonerações, regimes especiais e procedimentos simplificados, como a emissão de notas de produtor rural. A transição para um sistema baseado na tributação sobre o valor agregado, com ênfase em rastreabilidade e integração de dados, impõe uma agenda de governança fiscal e tecnológica. Essa transição exige atenção imediata, pois a conformidade passará a ser o principal fator de eficiência e redução de custos.

O novo modelo tributário, centrado no IBS e na CBS, pretende trazer neutralidade setorial e transparência na formação de preços. Ele substitui uma lógica de benefícios específicos por um regime geral de créditos e compensações. Embora o agronegócio possa contar com hipóteses de alíquota reduzida e regimes específicos em determinados contextos (especialmente para insumos, alimentos e bens essenciais), a essência do sistema será a documentação íntegra e tempestiva. Sem documento hábil, o crédito não se concretiza, e o custo efetivo aumenta.

Na prática, até operações que hoje são desoneradas ou pouco documentadas passarão a integrar um fluxo digital padronizado de informações fiscais, com validação prévia e rastreabilidade total. O foco deixa de ser o fato gerador isolado e passa a ser o valor agregado em toda a cadeia. Essa mudança desloca o centro da discussão: o que realmente fará diferença é a qualidade das obrigações acessórias. 

A conformidade passa a ter papel estratégico. A emissão de notas fiscais eletrônicas com conteúdo completo e padronizado exigirá treinamento e adequação, especialmente de produtores e cooperativas de menor porte. A escrituração digital, com cruzamentos automáticos e verificação de integridade, demandará a integração de sistemas de gestão e reconciliação de dados entre estoque, logística e faturamento. Além disso, o controle de créditos e devoluções exigirá rastreabilidade completa dos insumos e produtos, sob pena de glosas e acúmulo indesejado de créditos. 

Um exemplo concreto ajuda a ilustrar a dimensão dessa mudança: no novo modelo, qualquer falha na emissão da Nota Fiscal Eletrônica de um insumo agrícola pode impedir que o adquirente -por exemplo, uma agroindústria ou cooperativa – aproveite o crédito correspondente àquela compra. Em cadeias longas, típicas do agronegócio, a ausência ou inconsistência de uma única nota fiscal pode comprometer toda a sequência de aproveitamento de créditos a jusante. 

Essa transição traz desafios relevantes. O primeiro é cultural e operacional: a mudança de hábitos e o investimento em tecnologia são inevitáveis. O segundo é a heterogeneidade do setor, que reúne produtores, cooperativas, tradings e indústrias com diferentes níveis de maturidade fiscal e tecnológica. O terceiro desafio é a precisão exigida nas operações interestaduais e de exportação, nas quais a documentação correta será indispensável para viabilizar a devolução de créditos e evitar controvérsias. Por fim, onde ainda houver benefícios específicos, a prova documental de enquadramento será essencial, reforçando a importância de cadastros consistentes e contratos bem redigidos. 

A tradicional nota de produtor rural, que cumpriu papel relevante em um cenário de baixa digitalização, passará por adaptação. A convergência para documentos eletrônicos com validação e integração entre sistemas estaduais e federais é inevitável. Erros cadastrais ou divergências entre inscrição estadual, CPF/CNPJ e regime de recolhimento poderão inviabilizar o aproveitamento de créditos e gerar autuações.

Ainda que a promessa do novo sistema seja reduzir distorções e simplificar a tributação, o custo de conformidade tende a crescer no curto prazo, especialmente para agentes com menor estrutura. Em compensação, quem se antecipar colherá benefícios: maior aproveitamento de créditos, menor risco de glosas, ciclo de restituições mais curto e precificação mais previsível. 

A travessia para o novo modelo exige um plano coeso que envolva jurídico, fiscal, operações e tecnologia. A revisão de cadastros, a padronização de emissão e escrituração, o mapeamento de fluxos e pontos críticos e a implantação de controles de crédito são medidas essenciais. A qualidade documental de terceiros e parceiros (como cooperativas, transportadores e beneficiadores) será determinante para a apropriação de créditos em toda a cadeia. 

A reforma tributária desloca o foco da discussão do “quanto se paga” para “como se paga”. No agronegócio, que historicamente operou com desonerações e simplificações, o verdadeiro desafio está em construir uma infraestrutura de conformidade capaz de sustentar a não cumulatividade prometida. Documentação robusta, escrituração confiável e gestão eficiente de créditos de devoluções serão os pilares de quem atravessar essa transição com eficiência, mantando a competitividade e controlando custos em um setor que depende cada vez mais da excelência fiscal para competir globalmentel.


Luiz Roberto Peroba é Sócio/Tax Partner no Pinheiro Neto. Assessora clientes nacionais e estrangeiros de diversas indústrias, tanto em consultoria/planejamento tributário como contencioso, em disputas administrativas e judiciais.

Stella Oger Santos é Senior Tax Associate no Pinheiro Neto Advogados.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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