Surpresas após a aprovação da LC 214/2025: 3 pontos positivos e 3 pontos negativos da reforma tributária e a “Pax brasileira”

Balança do judiciário

Por Eurico Marcos Diniz de Santi

1. Não há texto sem contexto: novo sistema tributário e novo objeto para dogmática jurídica

É impossível entender a Reforma Tributária pela simples leitura da literalidade dos seus textos normativos. É preciso compreender o contexto e os processos decisórios que determinaram as “condições necessárias” para a aprovação do Sistema CBS/IBS.

Conforme ensina o Prof. Paulo de Barros Carvalho, “(…) o estudo das fontes do direito está voltado, primordialmente, para o exame dos fatos enquanto enunciações que fazem nascer regras jurídicas introdutoras. Por isso, as exposições de motivos das legislações não podem ser desprezadas. Na qualidade de marcas deixadas no curso do processo de enunciação, assumem indiscutível relevância, auxiliando e orientando a atividade do intérprete.”[1]

Não por acaso, a “enunciação enunciada” de todo o processo que culminou na aprovação da Reforma Tributária restou amplamente publicizada por diversos meios, entre eles, pelo livro que registra as notas técnicas do CCiF, pelo texto legal e pela extensa motivação original da PEC 45/19, pelos sucessivos relatórios e audiências registrados no site da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, finalmente, pelo livro que denominamos a Bíblia da CBS/IBS que contou com a colaboração de autores técnicos e protagonistas nos respectivos temas relativos ao design da PEC 45/19.[2]

2. Pontos positivos da Reforma Tributária

2.1. Sistema operacional CBS/IBS, motor de regras e aplicação parametrizada e automática da legislação

O Sistema CBS/IBS terá um motor de regras que contará com a legislação pré-interpretada e parametrizada pelo fisco. Caberá ao contribuinte apenas informar o fato praticado à fiscalização. A aplicação da legislação tributária será feita de modo automático pelo próprio sistema, que fornecerá uma resposta imediata quanto ao enquadramento e tributação da operação declarada pelo contribuinte. Isto é, a partir das informações prestadas pelo contribuinte, o motor de regras identificará a alíquota aplicável à operação, registrará o crédito na conta do adquirente-contribuinte, destinará o recurso para o Estado/Município no caso de adquirente não-contribuinte, etc. Por meio do motor de regras, o próprio auditor fiscal interpretará a legislação e disponibilizará no software o seu entendimento. Assim, caso o contribuinte queira seguir a interpretação feita pelo auditor fiscal, bastará baixar a calculadora da CBS, que já estará sincronizada com o entendimento da autoridade fiscal. Este aspecto positivo da Reforma Tributária foi objeto de diversos artigos publicados por mim no Jota.[3]

2.2. Fim do lançamento por homologação

A Reforma Tributária implementa uma mudança de paradigma relativamente ao lançamento. Muito embora o artigo 142 do Código Tributário Nacional confira competência à autoridade fiscal para realizar o lançamento, o que envolve, por sua vez, a interpretação e aplicação da legislação tributária, na prática, hoje, quem é obrigado a realizar tais atividades é o contribuinte. Com a Reforma Tributária e graças à tecnologia que vem sendo implementada para a sua operacionalização, finalmente o lançamento será efetuado pela própria autoridade fiscal. O Sistema CBS/IBS possibilitará ao contribuinte ter acesso prévio à interpretação conferida pela autoridade fiscal à legislação tributária o que lhe permitirá saber como a autoridade fiscal valora e qualifica a sua operação. Não só isso. O contribuinte que assim desejar poderá simplesmente informar o fato praticado, cabendo ao fisco a efetiva aplicação da legislação. Em caso de divergências interpretativas, abrir-se-á um canal de discussão para debater a correta qualificação da operação realizada pelo contribuinte, o que promoverá a um só tempo maior cooperação e simplicidade na resolução de controvérsias tributárias. O tema foi objeto de artigo publicado por mim no Jota.[4]

2.3. Criação do SINAFI: sistema nacional de fiscalização do IBS e da CBS

O sucesso do modelo de IVA dual adotado pela Reforma Tributária depende, em larga medida, da atuação harmônica e integrada das administrações tributárias (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Nesse sentido, o CCiF propôs a criação do Sistema Nacional de Fiscalização Integrada (SINAFI) do IBS e da CBS, cujas funções precípuas seriam (i) integrar a gestão de dados e informações das administrações tributárias, (ii) coordenar as fiscalizações do IBS e da CBS por meio da uniformização de procedimentos, (iii) reduzir duplicidades e custos decorrentes de procedimentos fiscalizatórios redundantes e repetitivos, (iv) aumentar a eficiência da fiscalização pela implementação de módulos integrados de gestão, (v) ampliar a integração entre as administrações tributárias por meio da realização de fiscalizações conjuntas, com equipes mistas e uso compartilhado de recursos. O CCiF se manifestou em nota técnica específica sobre o tema.[5] Vários pontos trazidos pelo CCiF foram incorporados pelo PLP 108/2024, como, por exemplo, a obrigação de que na hipótese de haver dois ou mais entes federativos interessados no desenvolvimento de atividades concomitantes de fiscalização em relação ao mesmo sujeito passivo, mesmo período objeto da fiscalização e mesmos fatos geradores, o procedimento será realizado de forma conjunta e integrada, cabendo ao Comitê Gestor do IBS disciplinar a forma de organização e gestão dos trabalhos, o rateio dos custos e a distribuição do produto da arrecadação relativo às multas punitivas entre os entes responsáveis pelo lançamento (art. 3º, § 1º, do PLP 108/2024).

3. Pontos negativos da Reforma Tributária

3.1. Tese econômica que pretende incluir o IBS e a CBS na base de cálculo do ICMS e do ISS

Alguns Estados e Municípios pretendem incluir o IBS e a CBS nas bases de cálculo do ICMS e do ISS sob a alegação de que como a Emenda Constitucional nº 132/2023 não teria excluído expressamente o IBS e a CBS das bases de cálculo do ICMS e do ISS, então eles estariam nelas incluídos. A tese é um absurdo lógico e jurídico, como sustentei em artigo publicado no Jota, seja porque incorre nas falácias do non sequitur e da negação do antecedente, seja porque viola diretamente os princípios da não-cumulatividade, neutralidade, transparência e simplicidade.[6]   

3.2. Desafios da Zona Franca de Manaus na Reforma Tributária:

A Reforma Tributária garantiu a continuidade do tratamento diferenciado para a Zona Franca de Manaus, mas a efetividade dessa proteção dependerá da regulamentação infraconstitucional e da implementação de políticas complementares que assegurem a competitividade das indústrias instaladas nessas regiões. Os desafios a serem enfrentados pela Zona Franca de Manaus foram objeto de artigo específico elaborado por mim em parceria com José Barroso Tostes Neto e publicado no Jota.[7] Um dos retrocessos da Reforma Tributária nesse ponto diz respeito à concessão de benefícios fiscais em forma de crédito presumido. A ideia de crédito presumido, contudo, é incompatível com o novo modelo do direito ao crédito vinculado ao pagamento (artigo 47 da Lei Complementar n. 214/25) e confronta a não-cumulatividade.

3.3. Utilização não técnica da expressão “confissão de direito” pela Lei Complementar nº 214/2025

Os artigos 45 e 46 da Lei Complementar nº 214/2025 estabeleceram que a apuração de IBS e CBS realizada pelo contribuinte implica confissão de dívida e constitui o crédito tributário. Entretanto, como sustentei em artigo publicado no Jota, ao prestar as informações necessárias para a apuração do IBS e da CBS, o contribuinte não está declarando abertamente ou admitindo completamente uma dívida, isto é, o crédito tributário, mas sim o fato concreto que praticou, mais especificamente, a transação por ele realizada, com todos os elementos que a perfazem (valor, local, data, partes envolvidas, etc.).[8] Logo, o que é objeto da declaração aberta do contribuinte não é a existência de uma dívida, mas sim o fato concreto que pode ou não dar origem ao nascimento da obrigação tributária.

4. Conclusão: princípios, regras, função social da dogmática e a nova “Pax” que se inaugura no sistema tributário brasileiro

No artigo “Pax brasileira controle da carga tributária: o papel do TCU na reforma tributária” publicado no Portal da Reforma Tributária, defendo que adentramos a uma nova era da dogmática do direito tributário.[9]

A “Pax Romana” corresponde ao período aproximado de 200 anos (27 a.C a 180 d.C) durante o qual o Império Romano foi marcado por relativa estabilidade, prosperidade e mínima guerra. Uma série de fatores contribuíram para a Pax Romana, entre eles a ausência de guerras dentro do Império, o seu crescimento econômico exponencial e a sua unificação cultural.[10]

Agora, a Reforma Tributária inaugura a “Pax Brasileira” entre as administrações tributárias e os milhões de contribuintes, ao instituir a não-cumulatividade plena dos tributos incidentes sobre o consumo e impedir as administrações tributárias de aumentar a carga tributária via interpretação restritiva dos dispositivos da Constituição e da Lei Complementar nº 214/25.[11]

É importante destacar, ainda, que os princípios da simplicidade, transparência, neutralidade e isonomia operam como alicerces das novas regras tributárias incidentes sobre o consumo e, portanto, da Pax brasileira. tais princípios foram positivados na Constituição por força EC 132/23. Eles constituem, portanto, as razões axiológicas fundamentais dos artigos 156-A e 156-B da Constituição, os quais estabelecem as regras constitucionais que delimitam a competência da LC 214/25 e orientam a sua “regulamentação”, assim como os subsequentes atos de aplicação do Direito Tributário pelas três esferas do Fisco. Além disso, vale destacar que muito antes do design do Sistema CBS/IBS, o CCiF já havia definido, desde 2015, que tais princípios deveriam ser tidos como as premissas do arcabouço jurídico da PEC 45/19, ex vi da Nota Técnica do CCiF 1/2015, revisada em 2019.

Por fim, deve-se apontar que ainda não há prática, aplicação ou jurisprudência acerca das regras e princípios estruturantes do Sistema CBS/IBS.

Estamos, portanto, diante da oportunidade histórica de construir, de forma antecipada, a dogmática que servirá de guia para a interpretação dos textos e das operações sujeitas ao IBS e à CBS. Este será o objetivo do meu livro “Reforma Tributária: Gênese e Análise da EC 132/23 e da LC 214/25” (RT & Thomson Reuters, 2025)[12], que pretende ofertar uma dogmática em conformidade às premissas que deram origem ao projeto “Nossa Reforma Tributária” (2014), no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP: garantir segurança jurídica e ambiente de negócios, sem aumento de carga tributária na transição.

Com esse escopo, o livro publicado neste segundo semestre de 2025 pela RT & Thomson Reuters triparte-se em grandes temas: gênese e análise do novo direito material, seus fatos geradores, bases de cálculo, alíquotas etc (Título I); análise de casos práticos e concretos em que tornarei públicos os fundamentos jurídicos de minhas respostas a consultas e de meus pareceres, sempre em completo alinhamento e coerência com a neutralidade que marcou minha atuação como policy maker nos últimos 10 anos no CCiF e na FGV (Título II); e o Direito Formal e a Nova Administração tributária 3.0, lançamento, decadência, prescrição, limites dos poderes do Comitê Gestor, processo administrativo e judicial (Título III). Ao longo dos anos, portanto, espero contribuir para a construção da dogmática jurídica do Sistema CBS/IBS.


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 421.

[2] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. (Coord.). Análise e Comentários sobre a Reforma Tributária do Brasil – EC 132/2023 e LC 214/2025. São Paulo: JudsPodivm, 2025.

[3] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Confissão de fato x confissão de dívida: a correta interpretação dos artigos 45 e 46 da Lei Complementar 214/25. Jota, publicado em 20/10/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/confissao-de-fato-x-confissao-de-divida. Acesso em 12/11/2025; SANTI, Eurico Marcos Diniz de. O novo ‘lançamento por declaração 3.0’ e o fim da maldição do ‘lançamento por homologação’. Jota, publicado em 17/06/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-novo-lancamento-por-declaracao-3-0-desenvolvido-para-o-sistema-cbs. Acesso 12/11/2025; SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Desvendando o futuro do sistema da CBS: a visão da Receita Federal e a administração tributária 3.0. Jota, publicado em 02/06/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desvendando-o-futuro-do-sistema-da-cbs. Acesso em 12/11/2025.

[4] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. O novo ‘lançamento por declaração 3.0’ e o fim da maldição do ‘lançamento por homologação’. Jota, publicado em 17/06/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-novo-lancamento-por-declaracao-3-0-desenvolvido-para-o-sistema-cbs. Acesso 12/11/2025

[5] CCiF. Nota Técnica nº XXVIII – Sistema Nacional de Fiscalização Integrado (SINAFI). Disponível em: https://ccif.com.br/xxviii-nota-tecnica-sistema-nacional-de-fiscalizacao-integrado-sinafi/. Acesso em 12/11/2025.

[6] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. O absurdo lógico e jurídico da inclusão do IBS e da CBS nas bases de cálculo do ICMS e do ISS: inclusão pretende reacender discussões que a reforma tributária buscou extirpar do ordenamento jurídico brasileiro. Jota, publicado em 17/07/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-absurdo-logico-e-juridico-da-inclusao-do-ibs-e-da-cbs-nas-bases-de-calculo-do-icms-e-do-iss. Acesso em 12/11/2025.

[7] SANTI, Eurico Marcos Diniz de; TOSTES NETO, José Barroso. Desafios da Zona Franca de Manaus na Reforma Tributária: Poder público e setor privado devem promover ajustes estruturais que garantam um desenvolvimento regional equilibrado e sustentável. Jota, publicado em 28/03/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desafios-da-zona-franca-de-manaus-na-reforma-tributaria. Acesso em 12/11/2025.

[8] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Confissão de fato x confissão de dívida: a correta interpretação dos artigos 45 e 46 da Lei Complementar 214/25. Jota, publicado em 20/10/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/confissao-de-fato-x-confissao-de-divida. Acesso em 12/11/2025

[9] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “Pax brasileira” e controle da carga tributária: o papel do TCU na reforma tributária. Portal da Reforma Tributária, publicado em 07/11/2025. Disponível em: https://www.reformatributaria.com/opiniao/pax-brasileira-e-controle-da-carga-tributaria-o-papel-do-tcu-na-reforma-tributaria/. Acesso em 12/11/2025.

[10] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “Pax brasileira” e controle da carga tributária: o papel do TCU na reforma tributária. Portal da Reforma Tributária, publicado em 07/11/2025. Disponível em: https://www.reformatributaria.com/opiniao/pax-brasileira-e-controle-da-carga-tributaria-o-papel-do-tcu-na-reforma-tributaria/. Acesso em 12/11/2025.

[11] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “Pax brasileira” e controle da carga tributária: o papel do TCU na reforma tributária. Portal da Reforma Tributária, publicado em 07/11/2025. Disponível em: https://www.reformatributaria.com/opiniao/pax-brasileira-e-controle-da-carga-tributaria-o-papel-do-tcu-na-reforma-tributaria/. Acesso em 12/11/2025.

[12] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Reforma Tributária: Gênese e Análise da EC 132/23 e da LC 214/25. São Paulo: RT/Thomson Reuters, 2025.


Eurico Marcos Diniz de Santi, diretor-fundador do CCiF, é professor da FGV Direito SP, onde é coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF).


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