
Por Aretha Soler Vilas Boas e Helton Kramer
O Split Payment e a Reforma Tributária
A recente reforma tributária, consolidada pela Emenda Constitucional n.º 132/2023 e detalhada pela Lei Complementar n.º 214/2025, trouxe à luz uma das inovações mais debatidas do novo sistema: o split payment, ou pagamento fracionado. Este mecanismo, inspirado em práticas internacionais, notadamente europeias, estabelece que, no momento de uma transação comercial, o valor da operação e a parcela correspondente ao tributo sejam automaticamente divididos. A parte referente ao tributo é, então, direcionada de forma imediata e direta ao Fisco, sem transitar pelas contas do fornecedor.
A premissa por trás do split payment é, à primeira vista, bastante sedutora. Ao evitar que o contribuinte tenha posse temporária do valor do tributo, busca-se reduzir drasticamente a inadimplência e a evasão fiscal. A arrecadação se tornaria instantânea e automática, conferindo maior segurança ao Estado na obtenção de receitas públicas. No cenário ideal, o modelo pareceria combater eficazmente a fraude, prevenir o “calote fiscal” e modernizar o processo de cobrança.
Contudo, ao confrontar essa promessa com a complexa realidade brasileira, os riscos associados à implementação do split payment tornam-se inegavelmente evidentes. O Brasil apresenta características socioeconômicas, jurídicas e infraestruturais distintas de países como a Itália ou a Polônia, onde versões limitadas do mecanismo foram adotadas e, ainda assim, enfrentaram dificuldades. A tentativa de generalizar tal sistema em solo nacional pode, portanto, acarretar efeitos colaterais graves nos campos econômico, jurídico e tecnológico.
Impactos Financeiros: o desafio para o capital de giro das empresas
Um dos impactos mais imediatos e preocupantes do split payment é de natureza financeira. Atualmente, os contribuintes recebem o valor integral de suas operações, utilizando-o, mesmo que de forma transitória, como capital de giro antes do recolhimento dos tributos devidos. Este fluxo financeiro é vital para a manutenção das atividades diárias de muitas empresas.
Com o novo modelo, esse recurso desaparece. O imposto será retido automaticamente, e o fornecedor receberá apenas o valor líquido da operação. Para grandes corporações, que geralmente possuem acesso facilitado a linhas de crédito, essa mudança, embora incômoda, pode ser administrável. No entanto, para pequenas e médias empresas (PMEs), que frequentemente dependem desses valores tributários como “fôlego” para suas operações, o impacto pode ser devastador. Imagine uma pequena distribuidora que vende mercadorias e, com o valor bruto recebido, cobre despesas operacionais urgentes, como o pagamento de fornecedores, frete ou salários, antes de quitar seus impostos no mês seguinte. Com o split payment, essa distribuidora teria uma parcela significativa de seu faturamento retida na fonte, enfrentando um estrangulamento de caixa imediato. Se somarmos a isso a possível morosidade estatal na restituição de créditos tributários — que podem levar meses, ou exigir ações judiciais, o cenário se torna crítico, comprometendo a sobrevivência de inúmeros negócios e impactando a economia.
Desafios tecnológicos: a complexidade da integração em tempo real
Outro obstáculo significativo reside na esfera tecnológica. A implementação do split payment demanda um sistema de integração em tempo real entre os documentos fiscais e as transações financeiras. O volume de dados a ser processado é estimado em até cento e cinquenta vezes superior ao do PIX, como destacado no texto original. (G1, 2025)
Para que o mecanismo funcione, a Receita Federal, o Comitê Gestor do IBS, as instituições financeiras e os prestadores de serviços de pagamento precisariam operar em total sincronia, sem margem para falhas. Contudo, em um país de dimensões continentais como o Brasil, caracterizado por profundas disparidades regionais e municípios com infraestrutura de conectividade precária, a expectativa de implementar um sistema dessa magnitude sem intercorrências soa como um excesso de otimismo. Falhas, na prática, seriam inevitáveis, podendo gerar transtornos operacionais e jurídicos massivos.
Implicações jurídicas: a ruptura da não cumulatividade e o risco de contencioso
A dimensão jurídica da discussão talvez seja a mais preocupante. O novo arcabouço legal condiciona o direito ao crédito tributário ao efetivo recolhimento do tributo na etapa anterior. Isso significa, em termos práticos, que o adquirente de um bem ou serviço poderá ser penalizado pela inadimplência do fornecedor. Se o tributo não for recolhido pelo Fisco na origem, o adquirente não terá direito ao crédito a ser aproveitado.
Este desenho, rompe diretamente com a lógica da não cumulatividade, um princípio basilar do IVA dual que a reforma pretende estabelecer. A não cumulatividade visa evitar o efeito cascata da tributação, permitindo que o imposto pago em etapas anteriores seja compensado nas etapas seguintes. Ao transferir para o contribuinte o risco da inadimplência do fornecedor – um risco que historicamente era suportado pelo Estado – o split payment pode criar uma cumulatividade disfarçada. Tal cenário, em vez de promover a simplificação e a neutralidade prometidas pela reforma, mina esses objetivos e cria um terreno fértil para uma nova onda de contencioso tributário, agravando a já complexa litigiosidade fiscal brasileira.
Custos da operação e as lições da experiência europeia
Além dos desafios financeiros, tecnológicos e jurídicos, o custo da operação do split payment não pode ser ignorado. Experiências em países da União Europeia, conforme relatórios da Comissão Europeia de 2019 citados nas referências, demonstraram que os gastos administrativos e tecnológicos de implementação podem, em muitos casos, superar os benefícios obtidos com a redução da fraude.
No Brasil, a tendência é que esses custos sejam, em grande parte, repassados ao setor privado, onerando desproporcionalmente os pequenos contribuintes. Estes já se encontram sufocados por um ambiente regulatório complexo e oneroso. A imprudência na implementação pode, inclusive, agravar a complexidade, a litigiosidade e a insegurança jurídica que a própria reforma almeja corrigir.
As lições da Europa são um claro indicativo da prudência necessária na implementação do split payment. A Itália, por exemplo, restringiu sua aplicação a operações com o setor público. Na Polônia, tentativas de expansão do modelo esbarraram em críticas severas, mantendo sua adoção limitada. O caso da Romênia é ainda mais contundente, onde o sistema foi revogado após pressões da União Europeia. (PEROTE; CONTE, 2025)
Em nenhum desses países o split payment foi adotado de forma ampla e irrestrita, justamente porque seus efeitos colaterais e custos de adaptação se mostraram significativos demais.
Conclusão: a necessidade de cautela e caminhos para a implementação
O entusiasmo governamental em torno do split payment evidencia uma aposta de alto risco. Embora o combate à evasão fiscal seja uma prioridade inquestionável, a escolha da ferramenta deve ser criteriosamente avaliada à luz da realidade nacional. O Brasil não lida apenas com um sistema tributário complexo; enfrenta também um histórico de desconfiança entre Fisco e contribuinte, falhas de infraestrutura tecnológica e profundas desigualdades nas condições de cumprimento das obrigações acessórias. Injetar, nesse cenário, um mecanismo automático e implacável de arrecadação pode, metaforicamente, ser comparado a administrar um remédio em dose tão forte que o tratamento se revela mais nocivo do que a própria doença.
Portanto, o Brasil deveria considerar uma implementação gradual e experimental do split payment, focando em setores específicos e com um monitoramento rigoroso dos resultados antes de qualquer expansão. Mais do que isso, é crucial estabelecer mecanismos céleres para a restituição de créditos, garantir que os custos de adaptação não sobrecarreguem os contribuintes mais vulneráveis e assegurar que eventuais falhas técnicas não transformem o “devido processo tributário” em um verdadeiro calvário digital para as empresas.
O split payment, por si só, não é um erro conceitual; ele pode ser um instrumento útil em contextos bem definidos. No entanto, tratá-lo como uma panaceia e implementá-lo sem a devida cautela tem o potencial de, em vez de modernizar o sistema, apenas “sofisticar o labirinto” tributário brasileiro, reforçando o “manicômio tributário” que Alfredo Augusto Becker já diagnosticava há mais de meio século.
Aretha Soler Vilas Boas é Sócia na Frizzo & Feriato Advocacia Empresarial, Embaixadora Mulheres no Tributário e Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/Maringá.
Helton Kramer é procurador do Estado do Paraná; Doutor em Direito Tributário pela UNIMAR; Mestre em Direito Constitucional pela UNIBRASIL.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.
Referências
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MACHADO SEGUNDO, Hugo de Britto. LC 214/2025 comentada: reforma tributária – IBS, CBS e IS. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2025.
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