
Por Pâmela Bonifácio
Introdução
A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi concebida pela Lei nº 3.173/1957 e posteriormente estruturada pelo Decreto-Lei nº 288/1967, com o objetivo de promover o desenvolvimento regional da Amazônia Ocidental. Consolidada como uma estratégia econômica e geopolítica, a ZFM viabilizou a industrialização em uma região de difícil acesso, aliando proteção ambiental à geração de empregos. Seu arcabouço jurídico é reforçado por proteção constitucional até 2073, conforme o artigo 92-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Para garantir sua competitividade frente aos centros industriais do Sudeste, a ZFM baseia-se em um modelo de incentivos fiscais múltiplos — federais, estaduais e aduaneiros — que reduzem significativamente o custo tributário das operações na região. Entre esses benefícios destacam-se: a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a suspensão da Contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), o diferimento ou isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e a redução ou suspensão do Imposto de Importação (II). Também são aplicáveis condições específicas de controle por meio do Processo Produtivo Básico (PPB), fiscalizado pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA).
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a publicação da Lei Complementar nº 214/2025, o sistema tributário brasileiro iniciou sua transição para um novo modelo de tributação sobre o consumo. Cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS) serão substituídos por três novos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência dos entes subnacionais; a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal; e o Imposto Seletivo (IS), também federal, com função extrafiscal.
Nesse novo arranjo, os incentivos tradicionais da ZFM passam a ser compensados por meio de créditos presumidos, conforme previsto nos artigos 444 a 454 da Lei Complementar nº 214/2025. Ao invés de isentar ou suspender tributos no momento da operação, o modelo exige a incidência integral dos novos tributos e posterior ressarcimento por meio de créditos calculados sobre os valores pagos. Os percentuais, critérios técnicos e condições para fruição desses créditos serão definidos por meio de regulamento, sob gestão do Comitê Gestor do IBS.
Embora essa sistemática tenha como objetivo manter a neutralidade tributária da ZFM, ela representa uma mudança profunda na lógica operacional das empresas da região, exigindo reestruturação dos controles fiscais, reavaliação dos modelos de precificação e análise de viabilidade econômica para diferentes segmentos.
O que são os Créditos Presumidos na Reforma
Os créditos presumidos previstos nos artigos 444 a 454 da Lei Complementar nº 214/2025 substituem a lógica tradicional de incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus (ZFM), baseada na isenção na origem, por uma sistemática de ressarcimento parcial posterior ao recolhimento integral dos novos tributos. Na prática, a empresa recolhe normalmente o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e, em seguida, apura um crédito presumido calculado com base em percentuais definidos em lei.
IBS x CBS – Lógicas distintas de crédito
• IBS (estadual e municipal): os percentuais de crédito presumido aplicam-se sobre o valor do imposto devido na operação de venda. O artigo 445 da LC nº 214/2025 fixa os seguintes percentuais:
o 55% para bens de consumo;
o 75% para bens de capital;
o 90,25% para bens intermediários;
o 100% para bens de tecnologia da informação e comunicação, inclusive produtos de informática.
• CBS (federal): o crédito é aplicado sobre a receita bruta da venda dos produtos incentivados. O artigo 448 da mesma lei estabelece:
o 6% sobre a receita quando o produto estiver sujeito à alíquota zero de IPI;
o 2% nos demais casos.
Esses créditos não afetam a arrecadação dos entes federativos de destino, pois são compensações concedidas pela União e operacionalizadas por meio do sistema da apuração assistida, conforme disciplinado também na Nota Técnica 2025.002 v.1.10, publicada pelo ENCAT.
Exemplo prático de cálculo
Suponha que uma indústria situada na ZFM realize uma venda de bens intermediários com IBS devido de R$ 100. Aplicando-se o percentual de 90,25%, conforme a legislação:
O valor do crédito presumido de IBS — calculado, por exemplo, em R$ 100 × 90,25% = R$ 90,25 — deverá ser documentado por meio de uma nota fiscal específica de crédito presumido, que conterá a identificação adequada no campo cClassTrib (Código de Classificação Tributária).
Esse campo está associado a cada item da operação e será utilizado nas rotinas de Recolhimentos e Verificações (RVs) e na apuração assistida, juntamente com a classificação específica tpCredPresIBSZFM e o grupo gCredPresIBSZFM, para a apropriação do crédito vinculado aos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus.
O preenchimento correto dessas informações será essencial para validação do crédito pelo sistema de apuração assistida e para aceitação pelo Comitê Gestor do IBS.
Obs: validar conforme NT vigente.
Apuração assistida e desafios de compliance
A chamada apuração assistida, prevista nos artigos 380 a 386 da LC nº 214/2025, representa uma mudança paradigmática no modelo de escrituração e fiscalização tributária nacional. Trata-se de um sistema em que o próprio Fisco gera, em ambiente digital, uma proposta de cálculo dos tributos devidos com base em dados extraídos
das Notas Fiscais Eletrônicas, declarações e cruzamentos sistematizados. O contribuinte poderá aceitar, corrigir ou contestar essa proposta, dando origem ao lançamento definitivo.
Na Zona Franca de Manaus (ZFM), essa sistemática adquire contornos ainda mais específicos. Como os benefícios passam a ser concedidos via crédito presumido pós-recolhimento, a confiabilidade e rastreabilidade das informações fiscais se tornam fundamentais. A apuração assistida será responsável por calcular o valor do crédito com base na nota de venda e nas codificações fiscais padronizadas (como o campo E-CLASST), o que exige consistência absoluta entre os dados operacionais e contábeis.
Esse novo modelo reforça o princípio da transparência ativa, mas transfere à empresa a responsabilidade por manter a integridade dos dados que alimentam o sistema. Uma falha no preenchimento do código de produto, na descrição do item ou no uso do campo destinado ao crédito presumido poderá inviabilizar a concessão do benefício. Além disso, o crédito somente poderá ser apropriado após a emissão de nota fiscal própria e a validação pela autoridade competente.
No caso do IBS, caberá ao Comitê Gestor Nacional, composto por representantes de estados e municípios, regulamentar os procedimentos operacionais da apuração assistida. Já no âmbito federal, a Receita Federal do Brasil editará as regras para a CBS. Até o momento, a Nota Técnica 2025.002 v.1.10 é o documento mais relevante sobre o assunto, trazendo os primeiros ajustes nos leiautes da NF-e para adaptação à Reforma.
Na prática, a apuração assistida impõe um compliance tributário digital mais rigoroso, especialmente para empresas da ZFM que dependem de incentivos fiscais para manter sua competitividade nacional. Diante disso, o investimento em sistemas integrados, capacitação das equipes e governança tributária passa a ser não apenas recomendável, mas essencial para a preservação dos créditos presumidos previstos na Reforma.
Diferenças entre o modelo anterior e o modelo pós-Reforma: impactos práticos para as empresas da ZFM
Antes da Reforma Tributária, o acesso ao incentivo fiscal pelas empresas da Zona Franca de Manaus (ZFM) ocorria no momento da apuração do tributo. No caso do ICMS, por exemplo, quando a apuração resultava em saldo devedor, aplicava-se diretamente o crédito estímulo, conforme regulamentado pela legislação estadual. A lógica era simples: se o contribuinte apurava R$ 100 de débitos e R$ 50 de créditos, restava um saldo devedor de R$ 50, sobre o qual se aplicava o benefício. Com um percentual de 55%, por exemplo, esse crédito estímulo abateria R$ 27,50, reduzindo o valor efetivamente recolhido.
No modelo pós-reforma, previsto na Lei Complementar nº 214/2025, essa dinâmica muda radicalmente. Agora, o contribuinte recolhe integralmente os tributos — IBS e CBS — e, somente após a apuração assistida, poderá apropriar o crédito presumido. O benefício deixa de ser um redutor direto na apuração e passa a ser operacionalizado por meio da emissão de uma nota fiscal de crédito específica.
A Nota Técnica 2025.002 v.1.10 detalha essa nova sistemática. Ela prevê o tipo de nota de crédito “03”, destinado à apropriação de crédito presumido de IBS sobre o saldo devedor na ZFM, conforme o art. 450, §1º, da LC 214/2025. A nota deverá
conter os campos adequados, como o E-CLASST, e ser emitida como condição para validação do crédito no sistema de apuração assistida.
Essa mudança afeta diretamente o fluxo de caixa das empresas. No exemplo anterior, os mesmos R$ 27,50 que antes reduziam o valor a pagar passam agora a ser recuperados posteriormente, condicionados à regularidade da nota de crédito e à validação do Comitê Gestor do IBS. Isso demanda maior planejamento financeiro e atualização dos controles internos, especialmente para empresas que operam com margens ajustadas.
O modelo novo também exige maior padronização tecnológica, integração entre sistemas fiscais e contábeis e treinamento das equipes responsáveis pela escrituração. Embora preserve formalmente os incentivos, a nova sistemática altera profundamente o timing e o modo de fruição desses benefícios — e isso pode impactar a atratividade da ZFM para determinados segmentos produtivos.
Segmentos impactados e os riscos assimétricos de competitividade
A transição para o modelo de créditos presumidos traz efeitos distributivos assimétricos entre os setores produtivos instalados na Zona Franca de Manaus (ZFM). A nova estrutura legal exige que cada empresa análise com profundidade o impacto tributário de sua operação à luz da Lei Complementar nº 214/2025 e da Emenda Constitucional nº 132/2023, pois a atratividade fiscal da ZFM deixa de ser generalizada e passa a depender do perfil do produto, da cadeia de valor e da carga tributária prévia.
Um dos pontos mais sensíveis da nova legislação diz respeito à mudança no tratamento do IPI para produtos com alíquota reduzida. Conforme a lógica estabelecida pela Reforma, produtos cuja alíquota do IPI — segundo a Tabela de Incidência (TIPI/2023) — seja inferior a 6,5% passarão a ter alíquota zero a partir de 2027. Isso se aplica inclusive a produtos com projeto técnico-econômico aprovado pela SUFRAMA, desde que enquadrados nessa faixa.
A medida impacta diretamente segmentos como o de cosméticos, alimentos industrializados e produtos de informática — que, embora estejam localizados na Zona Franca de Manaus, perderão o diferencial competitivo decorrente da isenção de IPI, já que o tributo deixará de incidir também fora da ZFM. O caso dos bens de informática é especialmente emblemático, pois muitos desses produtos têm alíquota de IPI inferior a 6,5% e serão desonerados nacionalmente, mesmo sendo amparados hoje por uma legislação específica, como a antiga Lei de Informática.
Esse movimento pode gerar uma migração industrial silenciosa, colocando em xeque a permanência de determinados setores na ZFM e forçando uma reavaliação da política de incentivos baseada no IPI como vetor principal de atração econômica.
Entre os produtos afetados estão bens de consumo de menor valor agregado e baixa carga fiscal, como:
• Escovas e pentes de plástico;
• Utensílios de cozinha e artigos de uso doméstico;
• Aparelhos de ventilação portáteis;
• Cosméticos com alíquota TIPI reduzida;
• Parte dos eletroportáteis fabricados para o mercado de entrada.
Esses segmentos perdem o fator decisivo de localização na ZFM. Se o IPI será zerado nacionalmente e o crédito presumido da CBS não for suficiente para compensar os custos logísticos e a burocracia local, a tendência natural do capital é migrar para regiões mais próximas do mercado consumidor, principalmente Sudeste e Nordeste.
Em contraste, há setores cujo vínculo com a ZFM é reforçado pela própria lógica da Reforma. O setor de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), por exemplo, foi expressamente excluído da regra de IPI zero, mesmo que os produtos tenham alíquota TIPI inferior a 6,5%, conforme o §2º do art. 485. Ou seja, mesmo com alíquota de IPI de 3,5%, empresas de informática continuarão sujeitas à tributação, mantendo o diferencial fiscal da ZFM nesse segmento.
Além disso, a LC nº 214/2025 assegura 100% de crédito presumido de IBS para produtos de informática fabricados na ZFM, o que reforça a viabilidade da cadeia produtiva na região. Segmentos como notebooks, tablets, componentes eletrônicos, impressoras e placas de circuito seguem com forte justificativa tributária e operacional para permanecer na Amazônia Ocidental.
Outro grupo de empresas praticamente “obrigadas” a manter sua operação na ZFM compreende setores com grande dependência de insumos importados e regimes aduaneiros específicos, como:
• Duas rodas (motos, peças e acessórios);
• Termoplásticos e derivados químicos;
• Concentrados para bebidas;
• Componentes de linha branca com desoneração combinada de importação, ICMS e PIS/COFINS.
Esses segmentos não apenas se beneficiam dos créditos presumidos sobre bens intermediários (até 90,25%), mas também necessitam da ZFM para viabilizar seus modelos logísticos e produtivos. A estrutura portuária, o entreposto aduaneiro, os incentivos estaduais e o PPB integrado ao processo fabril tornam a permanência na ZFM estratégica e quase inegociável.
Assim, o desenho da Reforma deixa claro: a ZFM permanece relevante, mas não mais para todos. Produtos com baixa carga tributária, apesar de ainda estarem sob algum nível de controle pela SUFRAMA, perderão o diferencial competitivo. Já os setores estratégicos e com operação industrial robusta se manterão favorecidos — desde que estejam prontos para operar no novo modelo de apuração assistida, emissão de nota de crédito presumido e rastreabilidade digital via campos como o E CLASST da NF-e.
O recado é objetivo: a ZFM deixa de ser zona de incentivos generalizados e se torna um território de incentivos setorialmente qualificados. Sobrevive quem entende as novas regras e se antecipa com inteligência tributária, financeira e operacional.
Considerações finais: novos pilares institucionais e riscos assimétricos de competitividade
A Reforma Tributária inaugura um novo ciclo para os regimes diferenciados brasileiros. No caso da Zona Franca de Manaus (ZFM), o modelo baseado em incentivos diretos sobre tributos federais, como o IPI, será substituído por um mecanismo mais técnico e controlado: os créditos presumidos de IBS e CBS. Embora a manutenção da ZFM até 2073 esteja assegurada constitucionalmente (art. 126 do ADCT), a eficácia prática desses incentivos dependerá de um tripé institucional: o Comitê Gestor do IBS, a SUFRAMA e os fundos compensatórios.
Com a arrecadação dos novos tributos (IBS e CBS) concentrada no estado de destino, a União será responsável por ressarcir os créditos presumidos às empresas situadas na ZFM, sem comprometer a arrecadação de estados e municípios compradores. Para isso, a LC nº 214/2025 institui mecanismos de compensação por meio de fundos de equalização, que funcionarão como um colchão fiscal entre o incentivo e o impacto arrecadatório. Trata-se de uma engenharia inédita no sistema tributário brasileiro, que visa manter a competitividade da região sem gerar guerra fiscal.
O Comitê Gestor do IBS terá papel central nesse novo arranjo: caberá a ele editar normas operacionais, validar os valores dos créditos presumidos e fiscalizar o correto enquadramento das operações. Isso adiciona uma camada institucional relevante, que requer das empresas não apenas conformidade técnica, mas também maturidade processual para lidar com um ambiente mais regulado.
Ao mesmo tempo, a SUFRAMA continuará sendo a guardiã da política de desenvolvimento regional, responsável por aprovar projetos técnico-econômicos e acompanhar a regularidade das empresas beneficiárias. A articulação entre SUFRAMA e Comitê Gestor será crucial para garantir segurança jurídica, padronização dos procedimentos e previsibilidade aos contribuintes.
Nesse cenário, a Reforma introduz um elemento novo e desafiador: nem todos os segmentos terão os mesmos motivos econômicos para permanecer na ZFM. Setores como cosméticos e alimentos processados, que atualmente gozam de alíquotas reduzidas de IPI, serão desonerados nacionalmente a partir de 2027. Para esses segmentos, a isenção de IPI na ZFM deixará de ser um diferencial competitivo.
Já o segmento de informática, mesmo com alíquota inferior a 6,5% na TIPI de 2023, terá um comportamento diferente: com o fim dos incentivos da antiga Lei de Informática fora da ZFM, o modelo vigente obriga a migração da produção para a região caso se deseje manter benefícios fiscais. Nesse caso, a Zona Franca de Manaus se consolida como a principal âncora tributária e industrial do setor, reforçando sua relevância como polo estratégico para tecnologia e eletrônicos.
Outros setores, como o de duas rodas, termoplásticos e bens intermediários industriais, devem manter sua presença na ZFM por motivos estruturais e fiscais, dado seu forte grau de integração produtiva e dependência dos incentivos locais.
A competitividade da Zona Franca será, portanto, reconfigurada por critérios mais técnicos: cadeia produtiva integrada, geração de valor agregado local, aderência ao modelo de apuração assistida e viabilidade econômica no novo desenho nacional de tributos. A transição exige planejamento, atualização normativa e resposta estratégica. Empresas que não se adequarem à nova lógica dos incentivos correm o risco de perder o acesso aos benefícios e, consequentemente, sua relevância no ecossistema industrial da região.
A ZFM sobrevive — mas sob novas regras. E entender esse novo tabuleiro tributário é condição essencial para continuar jogando.
Pâmela Bonifácio é contadora, tributarista pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), especialista em inteligência tributária com foco em incentivos fiscais e regimes especiais. Atuou como responsável pela implantação de uma unidade industrial na Zona Franca de Manaus (ZFM), liderando também o processo de parametrização fiscal e implementação de ERP. Atualmente, é professora no IBPT-LA, onde ministra conteúdos voltados à Reforma Tributária, Zona Franca e planejamento fiscal estratégico.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.