
Por Danilo Leal
A esta altura do ano, já está claro para todos que a reforma tributária não é apenas uma mudança legislativa, mas, sim, uma revolução silenciosa que irá mudar paradigmas para muitos setores. Já temos hoje um sem número de publicações, análises e também críticas ao novo regime sobre todo e qualquer dispositivo normativo da Lei Complementar 214/25. No entanto, sinto que pouco temos falado sobre impactos para alguns setores que estão prestes a serem atingidos por uma locomotiva, como é o caso do setor de fusões e aquisições (“M&A”).
Minha experiência em Tax M&A ao longo dos anos me mostrou que a tributação sempre foi um fator historicamente central na estruturação de operações de M&A, motivando a criação de estruturas societárias complexas que visam, legitimamente, otimizar a carga fiscal da transação e do investimento subsequente.
Considerando a transição iminente da reforma, precisamos nos questionar sobre como as operações de M&A serão impactadas pelo novo regime tributário, dado que estamos diante de uma mudança total de paradigma. A resposta (para variar) não é simples: é multifacetada e envolve uma série de aspectos próprios de cada setor. Após me deparar com alguns pontos sensíveis, deixo aqui meus dois reais de contribuição.
Devolução de Capital e Dividendos in natura
Um ponto emblemático a ser considerado é a potencial incidência de IBS e CBS sobre operações que, tradicionalmente, não eram tributadas no âmbito dos tributos sobre ‘consumo’. O Art. 5º da LC 214/2025 é claro ao listar como hipótese de incidência do IBS e CBS a “transmissão, pelo contribuinte, para sócio ou acionista que não seja contribuinte no regime regular, por devolução de capital, dividendos in natura ou de outra forma, de bens cuja aquisição tenham permitido a apropriação de créditos pelo contribuinte, inclusive na produção”.
Isso representa uma verdadeira mudança, pois operações como devolução de capital e distribuição de dividendos in natura são hoje, na maioria dos casos, realizadas de forma neutra para fins de PIS, COFINS e ICMS. Com a nova regra, se uma empresa distribui bens (e não dinheiro) a seus sócios ou acionistas que não sejam contribuintes no regime regular e a aquisição desses bens tenha permitido à empresa a apropriação de créditos de IBS e CBS, haverá incidência dos novos tributos sobre essa transmissão.
Essa nova tributação impacta diretamente as reestruturações societárias preparatórias para o M&A, como o carve-out de ativos. A viabilidade de tais movimentos dependerá de uma análise rigorosa dos ativos a serem transferidos e do regime tributário dos sócios/acionistas receptores, adicionando complexidade e custo a transações antes fiscalmente neutras.
O Novo Paradigma do Valuation: Quando os múltiplos tradicionais perdem sentido
O novo regime tributário exige uma reavaliação dos métodos de valuation das sociedades, quando passando por um processo de M&A. A análise não pode mais se limitar ao desempenho histórico de transações precedentes, devendo incorporar a capacidade da empresa-alvo de se adaptar à nova matriz fiscal. A existência de benefícios fiscais a serem extintos, por exemplo, torna-se um fator de risco, enquanto a operação sem tais incentivos pode representar uma vantagem comparativa.
Setores como o industrial e de revenda de mercadorias tendem-se a se beneficiar por uma maior eficiência pela não-cumulatividade plena dos novos tributos, com consequente redução da carga tributária, ao passo que para algumas empresas prestadoras de serviços pode haver um aumento na carga tributária. Essa diferenciação precisa ser refletida nas expectativas de múltiplos de valuation, sob pena dos investidores não conseguirem o retorno esperado ou mesmo impactarem o earn-out dos vendedores.
O período de transição que vai até o final de 2032 gera um desafio particular que não deve ser menosprezado. As empresas precisarão conviver com dois sistemas tributários bastante diferentes entre si, gerando custos de conformidades (compliance costs) e incertezas. Basta dizer que enquanto os tributos atuais, leia-se ICMS e ISS, são baseados de forma ampla na origem, o IBS considera o destino para fins de identificação das regras tributárias aplicáveis. Essa dualidade sistêmica torna a aplicação de múltiplos tradicionais deficitária, exigindo uma abordagem mais sofisticada de modelagem financeira.
Setores específicos
A due diligence tributária deverá se aprofundar nos regimes específicos previstos na reforma. A extinção do RET para incorporadoras, a oneração pelo Imposto Seletivo em certos setores, e as regras particulares para serviços financeiros, hotelaria e turismo são exemplos de fatores que afetam diretamente a rentabilidade e as margens. A interação desses regimes exige uma análise especializada para aferir o real impacto no valor e na viabilidade da transação e pode resultar em cenários complexos que impactarão significativamente a viabilidade da operação de M&A.
Due Diligence Tributária: Muito além dos passivos tradicionais
Durante a transição, as empresas precisarão manter dois sistemas de apuração tributária simultâneos, o que aumenta os custos administrativos e gera um terreno próprio para inconsistências e erros. A due diligence deve, portanto, avaliar a capacidade da empresa de gerenciar essa dualidade sistêmica e os riscos associados a possíveis falhas de conformidade durante a transição. Não ficarei espantado se um valor de contingências aumentar substancialmente pelo desafio de adaptação de boa parte das empresas durante os primeiros anos.
Contratos com fornecedores
A análise de contratos e parceiros comerciais torna-se igualmente crítica. Contratos de longo prazo que não prevejam mecanismos de ajuste para mudanças tributárias podem se tornar uma pedra no sapato. É essencial avaliar se os contratos vigentes podem ser renegociados ou adaptados para contemplar a nova sistemática, e quais os riscos associados a essa transição, que, de novo, pode impactar rentabilidade e, portanto, retornos.
Cláusulas Contratuais: Adaptando Instrumentos Jurídicos à Nova Realidade
Os instrumentos jurídicos do M&A devem ser adaptados à nova realidade. Cláusulas contratuais antes padronizadas (“boilerplate clauses”) podem se mostrar insuficientes para alocar os riscos e oportunidades decorrentes da reforma, exigindo a criação de novas salvaguardas, para capturar riscos e oportunidades que simplesmente não existiam no regime anterior.
Os mecanismos de ajustes de preço representam uma das áreas mais críticas para adaptação contratual. Com a reforma, tornam-se fundamentais para proteger compradores e vendedores. A complexidade surge da imprevisibilidade dos impactos: uma empresa pode se beneficiar da eliminação do regime atual, mas ser prejudicada pela perda de incentivos fiscais; outra pode enfrentar custos adicionais com o split-payment, mas se beneficiar da simplificação administrativa. Essa variabilidade exige cláusulas de ajuste de preço mais sofisticadas, que considerem múltiplos fatores e permitam ajustes bidirecionais.
As cláusulas de earn-out ganham uma dimensão completamente nova. Tradicionalmente, focavam em métricas operacionais. Com a reforma, é essencial considerar como as mudanças tributárias podem afetar essas métricas, independentemente do desempenho do negócio, evitando distorções no pagamento futuro.
As declarações e garantias também precisam ser expandidas para cobrir aspectos específicos da reforma tributária. Declarações sobre conformidade, que antes focavam no regime atual, agora precisam abordar a preparação da empresa para a transição. Isso inclui a adequação dos sistemas de informação, a capacitação das equipes e a implementação de processos para gerenciar a dualidade sistêmica, dentre outros aspectos.
Em resumo, as negociações de M&A serão mais complexas, com um foco acentuado na alocação de riscos relacionados à reforma, prolongando o processo e exigindo maior envolvimento de especialistas tributários e jurídicos na elaboração e revisão dos contratos.
Navegar por essas águas turbulentas exigirá expertise, adaptabilidade e um olhar atento às nuances da nova legislação. Estamos diante de um cenário desafiador, mas também de grandes oportunidades para aqueles que souberem se antecipar e se adequar.
Danilo Leal é sócio-conselheiro da /asbz. Atua na área tributária. Tem pós-graduação em direito tributário pelo IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário) e graduação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Os artigos escritos pelos colunistas não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.