Setor farmacêutico: os desafios da transição e a busca por equilíbrio no acesso a medicamentos

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Por André Menon, Fernanda Sá Freire e Mércia Braga

A reforma do consumo inaugura um novo modelo de tributação do consumo no Brasil. O setor farmacêutico, atualmente beneficiado com como isenções de ICMS e crédito presumido de PIS e COFINS, passará a ser tributado pelo IBS e pela CBS, cuja alíquota conjunta estimada é 28%. Para mitigar os impactos dessa alteração da carga tributária e de não onerar sobremaneira os consumidores, o setor foi contemplado com redução de 60% e 100% de alíquota, conforme a característica do medicamento.

 Não obstante os avanços normativos, e a tentativa de tornar os medicamentos acessíveis, persistem questões relevantes sobretudo no que tange ao potencial aumento de preços dos medicamentos no período de transição e à competitividade entre empresas, decorrente da metodologia de atualização da lista de medicamentos contemplados com redução de 100% de alíquota.

O novo modelo proposto pela Reforma Tributária parte da premissa de manutenção da carga tributária global, mas introduz alterações estruturais, como a adoção de uma alíquota única e a extinção de benefícios fiscais setoriais. Essa reconfiguração implica uma redistribuição da carga tributária, resultando na oneração de setores que, historicamente, eram desonerados. Tal rearranjo motivou amplas discussões acerca da necessidade de preservar regimes diferenciados para determinados segmentos, de forma a evitar que a alíquota padrão se tornasse excessivamente elevada e gerasse desequilíbrios competitivos entre os setores e/ou limitasse o acesso dos produtos aos consumidores.

Nesse contexto, nos termos do art. 9º da EC 132/2023, cabe à lei complementar estabelecer regimes específicos de tributação para bens e serviços definidos como prioritários, incluindo, entre eles, a possibilidade de aplicação de alíquotas reduzidas para medicamentos. Essa proteção tributária é considerada crucial para garantir o acesso da população brasileira aos serviços de saúde, além de fomentar a inovação e reduzir a dependência externa na área da saúde. 

Para regulamentar essa matéria é importante rememorar que quando da tramitação do PLP 68/2024, que foi convertido na LC 214/25 havia duas listas contemplando determinados princípios ativos na redução de alíquota de 60% e outros na alíquota de 100%, conforme descrição e classificação fiscal NCM. A proposta recebeu críticas do setor, sobretudo quanto a falta de transparência do critério adotado para criação dessas listas. 

Após amplo debate, o texto aprovado contemplou avanços quanto a adoção de um critério amplo para aplicação da redução de 60% da alíquota sobre medicamentos. De outro lado, foi mantido o critério de lista taxativa para os medicamentos (i.e. princípios ativos) sujeitos à redução de 100% da alíquota (art. 146), com exceção à redução de 100% nos fornecimentos de medicamentos, desde que registrados na Anvisa, para órgãos da administração pública direta, autarquias e fundações públicas; e para as entidades de saúde imunes ao IBS e à CBS que possuam CEBAS por comprovarem a prestação de serviços ao SUS.

Diante das novas regras aprovadas, alguns pontos têm gerado especial atenção por parte do setor. 

Atualmente muitos medicamentos – indicados na lista positiva – são contemplados com crédito presumido de PIS e COFINS, o que garante, na prática,  um não recolhimento das referidas contribuições. Com a extinção dessas contribuições a partir de 2027, esse crédito presumido deixa de existir. Os medicamentos da lista positiva passam a ser tributados no novo sistema com alíquotas reduzidas (60% ou 100%).

Nesse sentido, é importante destacar o efeito dessa alteração de tratamento no período de transição, entre 2027 e 2028, que será concentrada apenas na implementação da CBS. Parte dos medicamentos atualmente contemplados na lista positiva – ou seja sem tributação efetiva de PIS e COFINS – passará a ter apenas uma redução de 60% da CBS. Isso significa que, ao compararmos a carga vigente de PIS e COFINS com a futura carga da CBS, observaremos, a depender do medicamento, um aumento significativo do tributo federal. Assim, a redução de 60% aplicada à CBS não será suficiente para compensar a perda dos benefícios de PIS e COFINS, enquanto o ICMS continuará a incidir regularmente.

Dessa forma, projeta-se um aumento da carga tributária para os medicamentos atualmente contemplados na lista positiva – desde que não estejam incluídos na redução de 100% da alíquota da CBS – até que ocorra a extinção do ICMS e a implementação do IBS, momento em que – em 2033 – teremos uma redução de 60% também para o IBS. 

Nesse contexto, Flavia Patury Dias, Gerente Fiscal Tributário da Farmoquímica alerta para os riscos desse descompasso:

“Esse desalinhamento entre os prazos de extinção dos tributos atuais e a implementação plena do novo modelo exige atenção. Será preciso construir caminhos que preservem a viabilidade econômica da cadeia, sobretudo durante o período de transição.”

Outro tema sensível diz respeito a metodologia adotada para definição dos medicamentos/produtos sujeitos à redução de 100% da alíquota no novo modelo, a partir de uma lista com descrição do princípio ativo e classificação fiscal (NCM). Embora esse formato represente, em tese, um critério objetivo, a definição de benefícios tributários com base nesse parâmetro é hoje um dos principais pontos de conflito entre o fisco e os contribuintes no atual sistema tributário, sendo considerada incompatível com o modelo proposto pela reforma, que tem como premissa a simplificação.

Outro ponto crítico é que a lista vigente não se orienta por linhas de cuidado ou protocolos clínicos, mas apenas pela descrição do medicamento, sem um critério objetivo para a sua definição. Isso pode gerar distorções relevantes no novo sistema, especialmente quando medicamentos utilizados para o tratamento da mesma doença são tratados de forma desigual — com apenas um deles sendo atualmente desonerado. Na prática, a tendência é de aumento na comercialização de medicamentos incentivados e queda no acesso àqueles que, mesmo clinicamente equivalentes, não estiverem beneficiados.

Essa configuração, inclusive, já tem trazidos muitos debates no setor. Anne Ishikiriyama, Head de Tax do Grupo Merck resume essa preocupação:

“Manter um modelo baseado unicamente no NCM e no princípio ativo ignora a realidade da prática clínica e os avanços terapêuticos. É essencial que o novo sistema dialogue com a lógica do cuidado em saúde, para evitar distorções que comprometam o acesso e criem desigualdade entre tratamentos similares”.  

Embora a LC 214/2025 preveja a possibilidade de atualização da lista pelo Comitê Gestor do IBS, em conjunto com o Ministério da Saúde, essa revisão está limitada à inclusão de medicamentos inexistentes na data de publicação da norma anterior – e somente aqueles com a mesma finalidade terapêutica de princípios ativos já contemplados. 

Ou seja, o mecanismo de atualização não abre margem para inclusão de medicamentos que tenha ficado de fora da lista, mas que possuem mesma finalidade terapêutica de outros já contemplados. E não há incentivo para desenvolvimento de novas tecnologias para tratamentos de doenças outras cujo tratamento não esteja atualmente contemplado. 

Diante disso, fica claro que a reforma tributária inaugura um novo ciclo para a tributação do consumo no Brasil, mas impõe ao setor farmacêutico uma travessia delicada, especialmente no que se refere ao período de transição e à definição dos critérios de desoneração. A ausência de um olhar integrado entre lógica fiscal e realidade clínica pode ampliar desigualdades no acesso a tratamentos e gerar distorções de mercado. Para que a promessa de simplificação não se converta em obstáculo ao cuidado em saúde, será fundamental construir pontes entre a política tributária e a política pública de medicamentos — com escuta ativa, transparência e abertura para ajustes ao longo do caminho.


André Menon é sócio na Machado Meyer Advogados. Atua na área de Direito Tributário, com ênfase na consultoria de tributos indiretos (ICMS, IPI, ISS, PIS e COFINS) e contencioso administrativo municipal, estadual e federal.

Fernanda Sá Freire é sócia na Machado Meyer Advogados.

Mércia Braga atua na área de consultoria de Impostos Indiretos na Machado Meyer Advogados.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.


Este artigo foi publicado anteriormente na 3ª edição da Revista da Reforma TributáriaClique aqui para assinar e receber as próximas edições.

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