
Por Marcelo John Cota de A. Filho
Na última semana, o Portal da Reforma Tributária noticiou a colocação do Secretário Extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, de que, durante o período de transição da Reforma Tributária, os novos tributos sobre consumo – o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) – devem ser incluídos na base de cálculo do ICMS e ISS. Essa orientação causou apreensão no meio jurídico-empresarial, pois ressuscita a discussão quanto à indesejada tributação em cascata e cumulatividade no Sistema Tributário Nacional, problemas que foram prometidos de serem expurgados – ou mitigados – pela Reforma.
Caso prevaleça, tal medida pode representar uma quebra de expectativa que impacta negativamente a credibilidade do novo modelo tributário ainda em seu início. Pior, pode representar um apego desmedido à péssima herança da tributação sobre o consumo que tanto foi combatida durante o processo de concretização da Reforma. Nessa linha, busca-se apontar, neste artigo, os motivos pelos quais essa medida é completamente incompatível com a Reforma Tributária.
A incompatibilidade entre a medida e os fundamentos da Reforma Tributária
A Reforma Tributária, consagrada pela Emenda Constitucional 132/2023, inaugurou um novo modelo de tributação sobre o consumo no Brasil. O IBS e CBS foram criados para substituir os atuais tributos sobre o consumo (como ICMS, ISS, PIS e Cofins) e, sobretudo, para pôr fim à lógica da cumulatividade e ausência de transparência que vigoram no sistema atual.
Diferentemente do modelo presente, em que tributos “por dentro” acabam embutidos uns nos outros, o IBS e a CBS serão cobrados “por fora”, garantindo maior clareza ao contribuinte quanto à carga tributária incidente nas operações de consumo. O objetivo é claro: um sistema mais simples, transparente e não cumulativo, em que cada tributo incide apenas sobre o valor agregado à operação, evitando a cobrança de tributo sobre tributo.
Vale lembrar que a Reforma deve manter coesão com os conceitos fundamentais do Sistema Tributário Nacional. Princípios constitucionais, novos ou antigos, como da neutralidade, transparência e capacidade contributiva norteiam o novo modelo e servem de baliza para interpretar as inovações. Em síntese, como o propósito central da Reforma é modernizar e simplificar a tributação sobre o consumo, sem aumentar a carga tributária total e sem replicar as distorções do regime anterior, é sob essa ótica que deve ser avaliada a controvérsia acerca da inclusão dos novos tributos na base de cálculo do ICMS e do ISS.
Durante a tramitação da PEC 45/2019 (que deu origem à reforma), o texto original previa expressamente que o IBS e a CBS não integrariam a base de cálculo de outros tributos, incluindo ICMS e ISS. Entretanto, essa previsão acabou suprimida na versão final aprovada, abrindo margem para debates hermenêuticos quanto ao tema. Assim, na ausência de vedação explícita na Constituição, abre-se possibilidade para defender a inclusão dos novos tributos nas bases do ICMS/ISS, ampliando-se a base de cálculo desses impostos e, consequentemente, a arrecadação dos Estados e Municípios.
Essa é a lógica defendida por trás dessa medida: garantir que, enquanto os tributos antigos não forem integralmente extintos, os entes subnacionais (estados e municípios) mantenham sua arrecadação sem maiores percalços. Ao incluir IBS e CBS na base do ICMS/ISS, alega-se que a arrecadação total desses entes permanecerá estável durante a transição de regimes, em suposta observância ao princípio da neutralidade. Isto é, a posição manifestada pelo Secretário Extraordinário sugere que a “neutralidade” se refere à manutenção da arrecadação existente antes da Reforma.
Contudo, vale destacar que o princípio da neutralidade não está relacionado à arrecadação dos entes tributantes, mas sim representa a premissa de que a tributação não deve interferir nas decisões dos agentes econômicos. Isto é, o princípio busca evitar que os agentes resolvam por consumir um determinado produto ou serviço em detrimento de outro, unicamente em razão da tributação incidente sobre cada um deles. É dizer que tal princípio em nada se relaciona com a garantia da arrecadação dos Estados e Municípios.
A proposta de inclusão dos novos tributos na base de cálculo de ICMS/ISS, em essência, faz com que se cobre tributo sobre tributo, recriando a indesejada e combatida cumulatividade observada no sistema atual. Isso contraria diretamente os princípios estruturantes da Reforma Tributária, pois o novo sistema nasceu para ser simples, neutro, transparente e não cumulativo.
Permitir que IBS e CBS entrem na base de cálculo do ICMS e do ISS viola todos esses princípios: a simplicidade e a transparência dão lugar a cálculos tributários complexos e pouco intuitivos; a neutralidade é comprometida ao utilizar os novos tributos para onerar operações na sistemática cumulativa do ICMS e ISS; e a não cumulatividade é frontalmente desrespeitada, já que tributos passam a incidir uns sobre os outros. Em outras palavras, haveria uma distorção na base tributável, encarecendo artificialmente os bens e serviços e ocultando do consumidor o peso real dos tributos, justamente o contrário do que se espera com a Reforma Tributária.
É importante notar, ainda, que a própria Emenda Constitucional 132/2023 careceu de clareza sobre o ponto, não sendo possível pressupor como correta a posição de inserir os novos tributos na base de cálculo do ICMS/ISS. O secretário Appy reconheceu publicamente que teria sido ideal deixar explicitado no texto que o IBS/CBS integram a base do ICMS/ISS, para evitar insegurança jurídica. Mas, como isso não foi feito, não é possível presumir que a inclusão deva ocorrer, até mesmo porque ela é contrária aos novos princípios tributários e à própria teleologia da Reforma, que sempre pregou transparência e não-cumulatividade plena como seus fundamentos.
Não por acaso, a própria Emenda 132/2023, ao introduzir os novos impostos, contém dispositivos explícitos para prevenir a cumulatividade. O art. 156-A, §1º, IX da CF/88 estabelece que o IBS “não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, e 195, I, ‘b’, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239”. De forma equivalente, o art. 195, §17 da CF/88 prevê que a CBS “não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 156-A e 195, I, ‘b’ e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239”.
Nota-se que o ICMS e o ISS não foram mencionados expressamente nessas cláusulas de exclusão na versão final do texto, lacuna que deu margem à interpretação ora questionada. Contudo, esse silêncio não pode ser lido como autorização para a cobrança em cascata. A interpretação constitucional deve ser sistemática, alinhada com os objetivos da Reforma. Ou seja, se a Carta Magna se preocupou em vedar o IBS/CBS na base de diversos tributos, parece evidente que a mesma lógica deva se estender ao ICMS e ao ISS, pois o intuito foi assegurar a neutralidade da tributação e evitar cumulatividade. Qualquer conclusão diversa seria contraditória e ilógica, infringindo o espírito da nova ordem tributária.
A discussão representa um episódio que gera preocupação: antes mesmo do novo sistema entrar em vigor, já há insegurança jurídica quanto às repercussões econômicas dos novos tributos, gerando incerteza nas empresas sobre a precificação de seus produtos e serviços. Essa situação de dúvida evidencia o quão sensível e relevante é definir corretamente a questão, bem como antecipa os potenciais conflitos caso prevaleça a interpretação de incluir IBS/CBS na base dos tributos atuais.
Riscos práticos e de retorno a um modelo ultrapassado
Para além da incompatibilidade jurídica apontada, é preciso destacar os efeitos práticos nocivos dessa sistemática. Caso os fiscos estaduais e municipais efetivamente incluam IBS e CBS no cálculo do ICMS e do ISS, o resultado imediato será um impacto econômico nos preços de bens e serviços, pois a base de incidência estará artificialmente inflada. Ainda, as empresas terão de lidar com sistemas de precificação mais complexos, aumentando os custos de compliance (adequação de sistemas fiscais, treinamento de pessoal etc.) durante a transição.
Além disso, é praticamente certo que essa questão desencadeará uma onda de litígios: muitos contribuintes recorrerão ao Judiciário para discutir a constitucionalidade de pagar ICMS/ISS sobre valores de IBS/CBS. Vislumbra-se, portanto, um cenário de insegurança jurídica e contencioso em massa, outro fator que se objetiva evitar com a Reforma.
Antes mesmo da vigência da nova sistemática, a credibilidade do novo sistema já seria afetada, visto que a medida propõe continuar com uma das más heranças que motivaram a própria necessidade de uma reforma.
Do ponto de vista concorrencial e do consumidor final, os prejuízos também são claros. Preços embutidos de impostos por dentro dificultam a compreensão, pelo cidadão, do quantum exato de tributo que ele suporta, ferindo a transparência. O chamado “efeito cascata” tributário distorce as cadeias produtivas, não representando qualquer melhora em relação ao que já temos hoje em dia.
Foi justamente para eliminar esses efeitos que o Brasil optou por um modelo de IVA (imposto sobre valor agregado) na Reforma. Logo, permitir a incidência de ICMS/ISS sobre IBS/CBS significaria caminhar na direção contrária e perpetuar problemas antigos.
Trata-se de um contrassenso histórico: depois de décadas criticando a cumulatividade e combatendo-a com a instituição de um IVA, retornar a ela com a única premissa de resguardar a arrecadação dos entes tributantes revela um precedente perigoso e que pode “contaminar” as futuras interpretações quanto ao funcionamento do novo sistema.
Diante de todo o exposto, fica evidente que incluir IBS e CBS na base de cálculo do ICMS e do ISS é uma ideia equivocada e prejudicial, que vai de encontro tanto ao espírito da Reforma Tributária quanto ao arcabouço jurídico constitucional. Os argumentos a favor – centrados na proteção temporária da arrecadação estadual/municipal – não justificam a ruptura com princípios estruturantes da Reforma nem com a coerência destes em relação ao Sistema Tributário Nacional.
Em conclusão, permitir a inclusão dos novos tributos na base do ICMS/ISS seria um grave equívoco. Essa prática traria de volta problemas que o Brasil lutou por décadas para solucionar – a cumulatividade, a litigiosidade elevada, a opacidade tributária – minando a credibilidade e a eficácia da Reforma Tributária já em sua gênese.
É hora de garantir que o espírito da Reforma – simplicidade, neutralidade e transparência – não seja desvirtuado. Somente afastando categoricamente a hipótese de “tributo sobre tributo” é que o novo sistema poderá cumprir seu propósito de modernizar a tributação do consumo no país, sem onerar indevidamente os contribuintes e sem comprometer a competitividade da nossa economia.
Marcelo John Cota de A. Filho é advogado tributarista no escritório Schiefler Advocacia. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Gestão Tributária pela FIPECAFI. Participou da revisão do texto da Reforma Tributária no Senado Federal.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.