Reforma tributária do consumo: regimes diferenciados para medicamentos e efeitos práticos da LC nº 214/2025

Andressa Sehn da Costa

Por Andressa Sehn da Costa

A Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, reorganiza a tributação sobre o consumo no país e inaugura um desenho normativo que combina simplificação com mecanismos de transparência e de redução de litigiosidade. Para o setor de medicamentos, a norma cria regimes diferenciados que podem resultar em queda efetiva de preços — desde que observadas condições de repasse e de regulação. Para as empresas, a adaptação exigirá ajustes operacionais, revisões contratuais e monitoramento regulatório permanente.

A reforma mitiga a fragmentação que marcou o antigo sistema, marcado por elevada carga, custos de conformidade, insegurança jurídica e disputas federativas. O novo modelo estrutura a incidência em três tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada por Estados, Municípios e Distrito Federal; a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União; e o Imposto Seletivo (IS), direcionado a produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. O desenho foi orientado por quatro pilares: simplificação (unificação de tributos), justiça fiscal (redução da regressividade), estímulo econômico (ambiente pró-investimento) e transparência (clareza sobre a carga efetiva).

No eixo federativo, a LC nº 214/2025 enfrenta a guerra fiscal ao substituir benefícios pulverizados por Regimes Diferenciados de Tributação, com reduções de alíquotas de 30%, 60% e até 100% para setores essenciais ou estratégicos. A lógica é dar tratamento favorecido com critérios objetivos, reduzindo distorções concorrenciais e a necessidade de contencioso para sustentar incentivos locais. Para empresas que operavam com mosaicos de benefícios, o desenho tende a simplificar decisões locacionais e a previsibilidade de custos.

Nesse sentido, as empresas deverão revisar a logística, considerando sua relevância em razão da alteração para o princípio do destino. Muitos atacadistas abriram centros de distribuição em estados em razão dos benefícios fiscais que serão extintos com a reforma tributária. Também é importante que a empresa verifique se o benefício utilizado atualmente se enquadra nos requisitos para habilitação no fundo de compensação dos benefícios fiscais, que se inicia em janeiro de 2026 e encerra em 2028. 

O setor de medicamentos recebeu dois tratamentos específicos. O primeiro, de redução de 60% da alíquota, abrange medicamentos registrados na Anvisa (incluídos os manipulados), dispositivos médicos e de acessibilidade, serviços de saúde e composições para nutrição enteral e parenteral. Para fruição, a lei condiciona a adesão a Compromisso de Ajustamento de Conduta com a União e o Comitê Gestor do IBS ou ao cumprimento da regulação de preços pela CMED, conforme o § 2º do art. 9º. O segundo, de isenção total (100%), aplica-se a lista taxativa constante dos anexos da lei. Nesse ponto, é importante destacar que o PLP 108, ainda em andamento, busca alterar a existência de uma lista taxativa. 

A lista inicial de itens com redução de 60%, que no PLP nº 68/2023 chegou a abarcar cerca de 850 itens, foi revista na versão final da LC nº 214/2025. Já a lista de isentos será atualizada a cada 120 dias pelo Ministério da Fazenda e pelo Comitê Gestor do IBS, com participação do Ministério da Saúde, com objetivo de incorporar novas composições sem suprimir as já contempladas. Para a indústria, distribuidores e varejo farmacêutico, isso exige governança tributária para acompanhar revisões, recalcular preços e ajustar cadastros fiscais e sistemas de faturamento.

Do ponto de vista prático, as mudanças tendem a simplificar a apuração e a reduzir obrigações acessórias redundantes, com impacto direto no custo de conformidade. Na cadeia farmacêutica, a previsibilidade dos créditos e a eliminação de controvérsias — como cumulatividade do ISS, incidência concentrada em etapa única e divergências entre crédito físico e financeiro — favorecem o planejamento de margens e a renegociação de contratos de fornecimento. Empresas com portfólios amplos precisarão reclassificar seus estoques, revisar políticas comerciais e cláusulas de reajuste para refletir o tratamento diferenciado de IBS/CBS.

Persistem, contudo, incertezas jurídicas e operacionais. A lei demanda regulamentação sobre operacionalização dos Regimes Diferenciados, mecanismos de verificação da repercussão da desoneração e governança entre Comitê Gestor do IBS, Ministério da Fazenda e CMED. Eventuais revisões periódicas de listas e critérios podem gerar variações de preço e necessidade de ajustes sistemáticos de estoque e de contratos. Além disso, a calibragem do IS sobre itens nocivos impõe avaliação de portfólios com potenciais reclassificações. Até que as normas infralegais estejam maduras, recomenda-se prudência na precificação e provisões de risco.

Do ponto de vista estratégico, a reforma procura reduzir a litigiosidade e fortalecer a segurança jurídica — metas condicionadas à regulamentação e à aplicação uniforme das novas regras. Para capturar eventuais ganhos, as empresas devem mapear enquadramentos de produtos e serviços, implementar governança para monitorar atualizações de listas, integrar as áreas tributária, regulatória e de pricing e documentar repasses. A transição requer plano de comunicação com a cadeia e treinamento das equipes fiscal, vendas e compras.

Em síntese, a LC nº 214/2025 inaugura um ciclo de racionalidade fiscal com potencial de ampliar competitividade e acesso a medicamentos, desde que empresas implementem controles para assegurar a repercussão dos benefícios e a conformidade regulatória. A etapa normativa que se segue — voltada à operacionalização e à coordenação entre órgãos — será decisiva para transformar expectativa de simplificação em queda concreta de custos e em estabilidade de preços ao consumidor.


Por Andressa Sehn, sócia-líder da área de Entidades do escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).


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