
Por Thiago Abiatar Lopes Amaral e Guilherme Cesar Rubin
A reforma tributária do consumo, regulamentada pela Lei Complementar nº 214/25, inaugura um novo capítulo no sistema fiscal brasileiro. Para as empresas, o desafio vai além de compreender os conceitos do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). É preciso adotar, desde já, práticas de cálculo que estejam alinhadas à nova lógica, garantindo a integridade do modelo e minimizando riscos de litígio que, se negligenciados, podem comprometer a transição.
A lei foi explícita ao afirmar que ICMS e ISS não integram a base de cálculo do IBS e da CBS. Essa diretriz aparentemente simples traz, contudo, implicações profundas para a formação do preço. A sequência correta passa a ser: primeiro o cálculo do ICMS ou do ISS, conforme a operação, e depois a aplicação do IBS e da CBS sobre um valor que já não contém esses tributos. Qualquer tentativa de inverter essa lógica ou de incluir IBS e CBS na base dos tributos atuais não encontra respaldo normativo e compromete o próprio desenho da reforma.
O risco de repetir erros históricos é real. A inclusão do ICMS em sua própria base gerou durante décadas uma disputa judicial que só encontrou solução com a Emenda Constitucional nº 33/2001, após inúmeros embates entre contribuintes e o Fisco. Reabrir a porta para que um tributo componha a base de outro significa retomar um contencioso que o país já conhece, contrariando o espírito de simplificação e neutralidade que pautou a reforma tributária.
Nesse ponto, ganha relevância a tramitação do Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, que busca explicitar, de maneira inequívoca, a vedação à inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS, do ISS e do IPI durante a transição. A proposta legislativa procura eliminar qualquer dúvida interpretativa, reforçando a segurança jurídica e evitando a reedição de antigas disputas sobre “imposto sobre imposto”, blindando o novo modelo contra questionamentos que poderiam surgir justamente quando a transição demanda estabilidade.
Além da lei, há um raciocínio econômico que deveria sustentar essa proibição. Permitir a sobreposição de bases poderia gerar um aumento artificial da carga tributária, sem qualquer contrapartida de valor agregado. A neutralidade, princípio basilar dos IVAs no mundo inteiro, seria rompida, abrindo margem para distorções de preços, perda de competitividade das empresas e até mesmo repasse desproporcional ao consumidor final. Em setores com margens reduzidas, como o varejo, um equívoco na ordem de cálculo poderia significar a diferença entre manter a competitividade ou perder espaço de mercado.
Do ponto de vista jurídico-tributário, a questão envolvendo o ISS se mostra menos polêmica. Segundo a Lei Complementar nº 116/2003, a base de cálculo do ISS corresponde ao preço do serviço. Assim, considerando que o IBS e a CBS são tributos apurados “por fora”, ou seja, não estão embutidos no valor do serviço, a consequência natural é que esses tributos não sejam incluídos na base de cálculo do imposto municipal durante o período de transição.
Por outro lado, a discussão atinente ao ICMS é mais “acalorada”. Isso porque, tanto a Câmara quanto o Senado tinham inicialmente votado pela exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ISS e do ICMS, contudo, o texto foi suprimido pela Câmara em 15 de dezembro de 2023, após a PEC retornar do Senado.
Não se pode descartar a hipótese de que essa supressão não se trata apenas de uma mera omissão, mas sim de uma possível intenção do legislador de permitir a inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo dos tributos mencionados. Com isso, abre-se a possibilidade da incidência de tributo sobre tributo, prática que pode acarretar um aumento significativo da carga tributária, contrariando os princípios de neutralidade e simplicidade que nortearam a própria proposta de reforma. Essa interpretação reforça a necessidade de atenção redobrada por parte dos contribuintes durante o processo de transição.
Diante desse cenário, enquanto o Projeto de Lei Complementar nº 16 ainda tramita, intensifica-se a discussão acerca das consequências da supressão, pelo Congresso Nacional, do dispositivo que proibia expressamente a inclusão de IBS e CBS nas bases de tributos antigos. Surge, então, a dúvida: teria o legislador, ao retirar essa vedação, demonstrado intenção de permitir que, durante o período de coexistência dos modelos, o IBS e a CBS integrem a base de cálculo do ICMS, ISS ou IPI? Essa possibilidade levanta importantes questões quanto à segurança jurídica e à neutralidade tributária no processo de transição.
De um lado, há quem sustente que somente uma previsão clara e expressa na Constituição Federal ou na legislação poderia autorizar a retirada do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS. Esse entendimento se fundamenta no modelo legislativo adotado pela própria Constituição e pela Lei Complementar nº 87/1996, que especificam, por exemplo, os casos em que o IPI não deve compor a base do ICMS.
Por outro lado, a partir do que dispõe a Emenda Constitucional nº 132/2023 e a LC nº 214/25, o IBS e a CBS não integram o valor da operação, ou seja, não fazem parte do preço da mercadoria ou do serviço prestado. Por esse motivo, a nosso ver, não se pode presumir, com base apenas na ausência de vedação expressa, que tais tributos devam ser incluídos na base de cálculo do ICMS. Trata-se de uma interpretação sistemática que preserva a neutralidade e a transparência na incidência dos tributos ao longo da transição para o novo modelo fiscal.
O que está em jogo não é apenas uma questão técnica de sistemas de faturamento. É o sucesso da própria transição para o novo regime. Em 2025, as empresas já começam a se preparar para a entrada em vigor dos novos campos nas notas fiscais, o que exigirá ajustes profundos em ERPs, parametrização de bases e treinamento de equipes fiscais. Um erro de ordem na incidência dos tributos não apenas aumenta o risco de autuação, mas pode corroer a confiança dos agentes econômicos na coerência do modelo que o Brasil escolheu adotar.
A reforma tributária nasceu com o compromisso de entregar previsibilidade, reduzir a litigiosidade e alinhar o país às melhores práticas internacionais de tributação do consumo. Para isso, é fundamental que a transição não seja marcada pelo “imposto sobre imposto” que tanto já custou ao Brasil no passado. O recado da lei é direto: cada tributo em sua própria base, sem sobreposição indevida.
Nesse momento em que a engrenagem começa a girar, a atenção ao detalhe pode ser a diferença entre empresas que navegarão a mudança com segurança e aquelas que carregarão custos adicionais e passivos futuros. O desafio não está em cumprir a lei, mas em compreender o espírito da reforma – um sistema mais simples, neutro e transparente. A observância à ordem correta de cálculo é, em última análise, o primeiro passo para que a transição seja lembrada não pela insegurança, mas pela modernização do sistema tributário brasileiro.
Thiago Abiatar Lopes Amaral é sócio da área tributária do Demarest Advogados.
Guilherme Cesar Rubin é advogado da área tributária do Demarest.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.